Tosqueiras Musicais

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

"TOSQUEIRA" 6: Números Transreais, Ontologia e o Princípio de não-Contradição

Walter Gomide

Admitamos, inicialmente, que cada objeto com que lidamos, ordinariamente ou não, tenha infinitos atributos. Mesmo que tal tese possa parecer arbitrária, é bem mais intuitiva do que a contraditória que afirma que a quantidade de atributos é finita. 

Desta maneira, concebamos que para cada objeto c, há um conjunto $P$ de seus atributos, e a cardinalidade de $P$ é infinita. A natureza deste infinito cardinal, se enumerável ou não, é algo que deixamos de lado momentaneamente. Usando o axioma da escolha – de fato, a lógica por trás do que está por vir é uma lógica similar àquela que Edward Zalta usa em seus “Abstract Objects” e, portanto, é uma lógica de segunda ordem, enriquecida pela axioma da escolha. Quanto à teoria dos conjuntos que se propõe aqui, isto é algo que deixaremos a definir mais tarde, no decorrer da exposição-, podemos bem ordenar o conjunto $P$, de tal forma que este possa ser apresentado como o conjunto:

$\Pi = [\lambda xF^{1}x, \lambda xF^2x, ..., \lambda xF^{a}x,... [$,

sendo $\alpha$ um número ordinal de Cantor de $n$-ésima classe de números, sendo $n \geq 1$. Os atributos pertencentes ao conjunto $\Pi$  podem ser espácio-temporais ou não.

Na lógica de segunda ordem e “infinitária” em que estamos analisando os atributos de $c$, podemos formular a seguinte conjunção verdadeira:

$\bigwedge_{1}^{\alpha < \beta} \hspace{1mm} [\lambda xF^{\beta}x]c$

Simplesmente, a fórmula acima expressa que todos os atributos que estão em $\Pi$ são propriedades de $c$ – o termo $\beta$ indica a cardinalidade infinita de $\Pi$. Obviamente, se retirarmos pelo menos um atributo de $\Pi$, a fórmula acima se torna falsa, posto que estamos admitindo a validade do princípio de não-contradição, isto é, a fórmula:

$\forall x \hspace{1mm} \forall (\lambda yF^{\beta}y) \hspace{1mm} [\neg ( [\lambda yF^{\beta}y]x \wedge \neg [\lambda yF^{\beta}y]x)]$

é sempre verdadeira.

Dentro da perspectiva ontológica que está sendo proposta neste artigo, podemos dizer que o conjunto $\Pi$ é a essência de $c$.

$\Pi^{(1)} = [\lambda xF^{2} x, ..., \lambda xF^{\alpha}x, ...[$.

Por procedimentos sucessivos, chegamos à sequência de campos ônticos $\Pi^{(1)}$, $\Pi^{(2)}$, ... $\Pi^{(n)}$, ... $\Pi^{(a)}$. O campo ôntico $\Pi^{(\alpha)}$ é o limite deste processo infinitário. Cabe dizer que a natureza deste campo limite pode ser inferida a partir da aritmética transfinita envolvendo cardinais. A cardinalidade do campo inicial $\Pi$ é igual a $\beta$ e, portanto, a cardinalidade do campo limite $Pi^{(\alpha)} é igual a:

$\beta - \beta$.

Sabe-se da aritmética cantoriana dos cardinais transfinito que tal subtração – que nada mais é do que a adição $\beta  + ( -\beta)$ – é indeterminada, isto é, o resultado desta soma tanto pode ser o conjunto vazio, um conjunto finito ou um conjunto infinito de cardinalidade $\beta$. Na realidade, devido a esta indeterminação, Cantor vetou a subtraçao dos cardinais transfinitos. 

Entretanto, na aritmética dos transreais, tal indeterminação na subtração de infinitos é nomeada pelo número “nullity” $\Phi$, o qual é definido como:

$\Phi = 0/0$.

Assim, podemos apresentar a subtração $(\beta  - \beta )$, traduzida para a aritmética transreal, da forma seguinte:

$\infty - \infty = \Phi$.

Este resultado expressa aritmeticamente a indeterminação da subtração entre infinitos, vistos aqui como representativos de cardinalidades de conjuntos infinitos. Assim, o conjunto resultante desta subtração não é definido, podendo tanto ser o conjunto vazio, ou um conjunto finito, ou mesmo um infinito.

Levando em conta esta indeterminação, representemos o campo ôntico $\Pi^{\alpha}$ da forma seguinte:

$\Pi^{(\alpha)}= \{ ... \}$.

Tal representação nos sugere a completa indeterminação do campo ôntico limite, e podemos afirmar que a cardinalidade de tal campo é “nullity”, isto é:

$Card \{ ... \} = \Phi$.

Na realidade, o campo ôntico $\Pi^{(\alpha)}$ representa o nada ontológico, uma situação em que o objeto $c$ está completamente fora de qualquer possibilidade de inserção na lógica predicativa, posto que mal sabemos se ele tem propriedades ou não, uma vez $\{ ... \}$ pode ter elementos ou ser um conjunto vazio. 

De fato, nesta condição limite, nem mesmo podemos garantir do princípio de não contradição. Mas por que razão o princípio de não contradição falharia no caso limite em que ficamos diante do nada ontológico, figurado sob a forma do conjunto indeterminado $\{ ... \}$? Para ver como isto se dá, consideremos uma propriedade qualquer $\lambda x \Omega x$. Esta propriedade, qualquer que esta seja, se aplica a $\{ ... \}$? Primeiramente, para respondermos a esta pergunta, temos de ter em mente que não temos nenhuma intuição da natureza conjuntística de $\{ ... \}$. Como resultado de uma subtração entre conjuntos infinitos, tal conjunto pode ser finito, infinito ou vazio. Mas estas possibilidades não são excludentes entre si; trata-se, metaforicamente, de um conjunto equívoco em que todas estas três possibilidade estão “superpostas”. Assim, os três casos relativos à cardinalidade de $\{ ... \}$ são simultâneos e não dizem respeito a possibilidades lógicas distintas, mas colapsam três casos contraditórios em um só – daí a interdição que a subtração de cardinais transfinitos tem na teoria de Cantor. 

Portanto, não se pode definir se $\lambda x \Omega x \in \{...\}$, e nem se $\lambda x \Omega x \not\in \lambda x \Phi x$. Desta maneira, o princípio de não contradição, expresso sob a forma de:

$\forall x \forall (\lambda y \Omega y) \hspace{1mm} [\neg ([\lambda y \Omega y]x \wedge \neg [\lambda y \Omega y]x)]$,

tem valor indeterminado, posto que a conjunção $[\lambda y \Omega y]x \wedge \neg [\lambda y \Omega y]x$ é indeterminada, e a negação desta conjunção também o é.

“Toscamente” falando, uma ontologia que admita a presença do nada acaba gerando situações em que o princípio de não-contradição é silenciado quanto à sua força lógica.


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

"TOSQUEIRA" 5: A Teoria Geral das Sequencias e suas aplicações

Walter Gomide

A terceira parte da “Conceitografia” é uma apresentação geral das leis e conceitos concernentes à noção de “sequência”, uma ideia fundamental no processo de fundamentação lógica de qualquer teoria científica – mais precisamente, o conceito de “sequencia” é a base sobre a qual qualquer discurso pretensamente racional se fundamenta.

Mas o que é uma sequência? Para Frege, sequência é uma relação qualquer entre dois objetos. Em linguagem hodierna e usual da lógica de predicados, uma sequência é uma relação binária qualquer, traduzida para a linguagem do cálculo de predicados como “predicados diádicos”. Na abordagem fregeana, uma sequência é indefinível em termos mais simples e, portanto, é um termo primitivo da lógica. Neste sentido, a legitimidade do conceito de sequência reside na própria intuição lógica, não sendo necessário buscar elementos mais simples com os quais a noção de sequência possa ser definida; sequência é uma noção, por assim dizer e com abuso de linguagem, “axiomática” da lógica fregeana.

Desta maneira, a teoria geral das sequências (TGS) é a exposição das propriedades e leis fundamentais que governam as relações binárias em geral. Portanto, a TGS busca apresentar a estrutura lógica de qualquer teoria em que se faça uso de relações binárias nas mais diversas interpretações que estas possam ter regionalmente, isto é, dentro de contextos teóricos específicos. Assim sendo, a TGS se presta tanto como pano de fundo de uma teoria sobre a causalidade, posto que “$x$ causa $y$” é uma relação binária, como para a fundamentação lógica da aritmética, uma vez que esta se constrói a partir da relação binária de sucessão entre números – “$ n + 1$ é o sucessor de $n$”.

Este alcance quase que irrestrito da TGS é particularmente acentuado por Frege, ao nos advertir, no parágrafo que inicia a “Teoria Geral das sequências” (o parágrafo 23), que “as proposições sobre sequências desenvolvidas no que se segue ultrapassam em generalidade a todas as proposições que podem ser derivadas de qualquer noção particular de sequência”. De fato, a noção de sequência é o fundamento racional de qualquer discurso em que se tenha relações entre objetos. Qualquer correspondência entre objetos que pretende ter força heurística dentro de um quadro teórico tem suas leis e propriedades apresentadas por algum conceito ou proposição da TGS. 

Mais quais são os conceitos fundamentais da TGS que abordam a noção de sequência? O primeiro conceito fundamental que Frege apresenta é o de “propriedade hereditária em uma sequência $f”$. Basicamente, a noção de hereditariedade em uma sequência é o conceito fundamental que serve como substrato lógico que ancora a intelecção de que certas relações binárias, uma vez que indicam a “passagem de um objeto a outro”, realizam tal fluxo, tal passagem, de tal forma que algumas propriedades do objeto inicial se preservam no objeto final da relação: por assim dizer, o primeiro objeto do par ordenado da relação binária “doa” certas propriedades para o segundo objeto do par ordenado. Em símbolos lógicos modernos, a noção de hereditariedade se expressa da forma seguinte:

$Her_{f} F =_{DF} (\forall x)(Fx \rightarrow (\forall y)(f (x,y) \rightarrow Fy))$.

A noção de “hereditariedade em uma sequência $f”$ é apresentada no parágrafo 25 da “Conceitografia”. O que nos diz tal definição é o fato de que, por meio da sequência $f$, uma relação binária adequadamente escolhida, as propriedades de $x$ que são hereditárias, módulo $f$, são transmitidas a $y$. Por exemplo, consideremos a propriedade de ser uma lei da física que governa ou estrutura certa porção $x$ do espaço adequadamente escolhida – um sistema de referência. Concebamos também que esta porção $x$ se relaciona com uma outra porção $y$ do espaço por meio da sequência “$x$ é conexo a $y$” – com certa liberdade no uso da linguagem matemática, coisa de “tosco”, digamos que a conectividade entre $x$ e $y$ signifique a existência de pelo menos um caminho contínuo entre $x$ e $y$. Assim, desde que a propriedade de ser uma “lei física que vale em x” seja hereditária na sequência “$x$ é conexo a $y$”, então podemos inferir que a lei física que vale em $x$ também vale em $y$. Saber ou não se a conectividade entre referenciais é condição para a invariância das leis da física é um problema físico, não lógico. No entanto, se isto não for o caso, isto é, se a mera conectividade entre referenciais não for garantia da invariância das leis físicas, então se busca uma sequência “física” mais adequada para tanto. De fato, pela teoria da relatividade geral, a invariância das leis física é obtida quando os referenciais envolvidos se relacionam pela sequência “$y$ é uma transformação tensorial, covariante ou contravariante, de $x”$ (aqui cabe ser mais preciso quanto aos termos utilizados, mas como o espírito do “insight” é o de “tosqueira” criativa, deixemos isto para outra ocasião).

Na realidade, a TGS consiste em um “sistema de expectativa racional do que encontrar em teorias específicas”. De fato, a noção de propriedade hereditária em uma sequência $f$ é um conceito que nos orienta para pesquisas regionais ou particulares. Seria muito extravagante, por assim dizer, conceber um domínio de objetos, postos em uma teoria, de tal forma que estes não possuam propriedades hereditárias em relação a alguma relação binária. Sem propriedades hereditárias, objetos que se relacionam causalmente não poderiam ser considerados sob conceitos compartilhados, uma vez que são tais conceitos ou propriedades que são transmitidos na relação causal, um exemplo arquetípico de sequência lógica. Em uma teoria onde não há propriedades hereditárias, os objetos devem ser tratados como “nomes absolutos”, sem a possibilidade da intermediação conceitual que possa colocar os objetos sob uma mesma perspectiva conceitual.

O segundo conceito que Frege apresenta na TGS é o de ”$x$ é ancestral de $y$ na sequência $f”$ (parágrafo 26). Em símbolos, tal conceito se expressa da forma seguinte: 

$Anc_{f} (x,y) =_{DF} (\forall F)(Her_{f} F \rightarrow Fz) \rightarrow Fy)$.

O conceito acima é o fundamento lógico da noção de “precedência” entre objetos. Mais precisamente, a noção de ancestralidade em uma sequência nos dá a possibilidade de distinguir uma relação de ordem entre objetos. Suponhamos que estipulemos que haja um ponto primordial de onde o universo observável se originou. Desta forma, este ponto é o ancestral de qualquer outra situação posterior em que o universo se encontre. Tomemos o universo em seu estado atual. Então, busquemos uma sequência adequada para servir de ligação entre o ponto primordial e o estado atual do universo. Sem entrar nas dificuldades cosmológicas que tal ligação possa engendrar, consideremos bem simplificadamente que tal sequência seja “$x$ se expande até $y$”. No estado primordial do universo, deve haver propriedades relativas a este estado que sejam transmitidas pela expansão anteriormente mencionada. Reparemos que a existência de tais propriedades é uma expectativa racional, desde que falemos de uma clara situação de precedência entre as configurações do universo – neste caso, uma precedência temporal. Na situação inicial do universo, havia singularidades físicas, isto é, regiões do espaço de energias ou densidade infinitas. Por conseguinte, podemos esperar que o universo atual, “uma vez que tem por ancestral o ponto primordial”, deva conter singularidades. Reparemos que o conceito de ancestralidade em uma sequência $f$, antes de ser uma noção depreendida da experiência física ou de qualquer outro tipo, é um princípio “regulativo” da experiência; trata-se de uma lei que nos indica como a razão (ou o pensamento puro) espera que a natureza se comporte.

Mas não só na física teórica ou na cosmologia encontramos uma aplicação da noção de ancestralidade em uma sequência. Consideremos agora que estejamos lidando com a noção de proposições em uma prova ou demonstração. Seja $x$ um conjunto de axiomas que são assumidos como verdadeiros. De $x$, podemos derivar $y$ através de uma adequada regra de inferência $f$. Claramente $x$ precede $y$ na demonstração, e a regra de inferência usada para derivar $y$ pode ser vista como uma sequência que transmite certas propriedades dos axiomas para as proposições que podem ser derivadas de $x$ por meio de $f$. No caso em questão, a proposição em análise é $y$. Obviamente, espera-se que a propriedade de “ser verdadeiro”, presente em cada um dos axiomas, seja transmitida a $y$ por meio de $f$. Temos, então, de forma clara, a utilização da noção de ancestralidade em uma sequência no contexto da teoria da prova e, mais uma vez, percebe-se o caráter prescritivo da noção de precedência lógica: a razão nos oferece um conceito que nos diz como uma demonstração ou prova “deve” se comportar.

No parágrafo 29 da “Conceitografia”, Frege apresenta o conceito de “Pertinência à sequência $f$ que se inicia com $x$”. Em símbolos,

$Pert_{f} (x,z) =_{DF} \hspace{1mm} Anc_{f} (x,z) \hspace{3mm} \vee \hspace{1mm} (x = z)$.

A relação acima é o fundamento lógico da noção de estrutura ordenada: é o “índice lógico” de qualquer relação que possa ser vista como ilustrativa da idéia de “menor ou igual”, dentro de um contexto que nos dá um sentido ordinal na estruturação de um domínio: com a relação $Pert_{f} (x,z)$, pode-se falar de primeiro, segundo, terceiro, etc elementos de um domínio de objetos, sempre a partir de uma sequência $f$ que é especificada neste contexto.

Para vermos o conceito acima funcionado como “determinante de expectativas racionais”, concebamos que queiramos determinar a cardinalidade do contínuo em termos de infinitos menores. Sabemos que o contínuo c é maior que “alef zero”, isto é:

$c > \aleph_{0}$

Também sabemos, pela teoria dos conjuntos, que $c = 2^{\aleph_0}$. Desta maneira, há uma identidade demonstrada na teoria dos conjuntos que relaciona os cardinais infinitos c e À0. Mas há algum “alef” indexado que seja igual ao cardinal $c$, isto é, a cardinalidade do contínuo pode ser expresso em termos “alefianos”?

Para responder a esta pergunta, o conceito $Pert_{f} (x,z)$ pode ser útil. Claramente, uma vez que 

$c > \aleph_{0,}$

então a cardinalidade do contínuo pertence a uma série de cardinais que cresce em tamanho a partir de alef-zero, isto é:

$Pert_{f} (\aleph_{0}, c) \hspace{2mm} =_{DF} \hspace{2mm} Anc_{f} (\aleph_{0} ,c) \hspace{2mm} \vee (\aleph_{0} = c)$.

Mas sabemos que o cardinal do contínuo é maior que alef-zero, o que nos permite afirmar, a partir da noção de pertinência em uma sequência módulo $f$, que há alguma sequência que “produz ou gera” o cardinal do contínuo a partir de alef-zero. De fato, pela hipótese generalizada do contínuo, tal sequência é a exponenciação de base $2$ e expoente infinito $X$, de tal forma que:

Existe algum $X$, tal que $2^{X}  = suc (x)$,

Em que "$suc(x)$” é o sucessor imediato de $x$. Por conseguinte, a hipótese do contínuo, particularizada para $X = \aleph_{0}$, é o resultado esperado para a relação entre o contínuo e alef-zero, desde que assumamos que a estrutura dos cardinais infinitos, assim como a dos cardinais finitos, tem uma fundamentação lógica baseada na noção de pertinência em uma sequência $f$, e que a melhor sequência que expressa tal estrutura é a hipótese do contínuo generalizada. Assim, o cardinal $c$ é igual a “alef-um”. O interessante desta proposta fundacional da teoria dos cardinais infinitos é o fato de, com tal fundamento baseado na TGS, mais a hipótese generalizada do contínuo, a estrutura dos cardinais infinitos é isomórfica a dos cardinais finitos: o infinito e o finito, postos em série, são análogos. 

Não só na teoria matemática do infinito se encontram definições cujo fundamento lógico reside na noção de Pertinência em uma sequência $f$. Na Biologia, por exemplo, quando um biólogo busca encontrar o tronco comum entre todas as espécies animais, o que se pretende é uma espécie ancestral da qual todas as outras espécies se derivam. Tal espécie primeira (ou mesmo um indivíduo, singularmente dado), é o ancestral de todas as outras: há uma sequência biológica – a transmissão de material genético, por exemplo- que determina uma sucessão de espécies ou de indivíduos que pertencem à sequência biológica “$x$ transmite material genético para $y$” que se inicia com o hipotético ancestral. 

No parágrafo 31 da TGS, frege apresenta a noção de “procedimentos muitos para um”. A saber:

$Un(f) =_{DF} (\forall x)(\forall y)(fxy \rightarrow (\forall z)(fxz \rightarrow y = z)$.

A expressão acima nos dá a definição formal de uma sequência, em si mesma uma mera relação diádica, que é funcional, isto é, para dois objetos quaisquer $x$ e $y$, se $fxy$ e $fxz$, então $y$ é igual a $z$. Na ciência, em especial na física, o conceito de função é de fundamental importância. Como exemplo, podemos tomar o conceito de trajetória, uma função definida nos instantes de tempo e cujo conjunto imagem são pontos do espaço (vale lembrar que o primeiro tratamento matemático dado ao conceito de trajetória no sentido de uma função de instantes de tempo nos pontos do espaço foi dado por Nicolau de Oresme, nos séculos XIV-XV). 

Com o conceito de procedimento unívoco, Frege apresenta o substrato lógico de uma noção que, aparentemente, poderia estar ancorada em algum tipo de privilegiada intuição física ou empírica. Mas Frege tem de colocar todos os instrumentos conceituais necessários à feitura de teorias científicas dentro de noções definidas na TGS e, obviamente, a noção capital de correspondência funcional não poderia estar ausente do quadro das noções cujo fundamento é lógico. Frege “turbinou” a lógica afim de que esta se apresentasse como porto seguro de qualquer construção lógico-discursiva com pretensões racionais. Sem dúvida, um projeto para lá de ambicioso que só um “grande tosco” como Frege, um escorpiano arretado que nasceu aos oito de novembro de 1848, poderia levar adiante; e Frege pagou caro por tal projeto: um preço que poucos estão dispostos a pagar – coisa de “tosco”...

terça-feira, 1 de novembro de 2016

"TOSQUEIRA" 4: Uma proposta metafísica e matemática para a criação do mundo.

Walter Gomide

1) A “CRIAÇÃO” METAFÍSICA DO MUNDO SEGUNDO LEIBNIZ.

Segundo Leibniz, o mundo foi criado por Deus a partir de uma “escolha do melhor dos mundos possíveis”. De fato, na mente Deus estão todos os mundos de forma atual, isto é, todos os mundos residem no pensamento de Deus em sua compleição, em sua plena atualidade. Dada esta situação só compreensível exaustivamente para a intelecção divina, Deus opta por um destes mundos e o faz real, no sentido de ser este mundo fruto da opção divina aquele que se faz acessível à experiência humana: o homem, na sua condição de agente epistêmico, interage com uma realidade que veio da mente de Deus, e Deus escolhe o mundo físico que nos circunda como o mundo real a partir de propósitos insondáveis à razão humana. A única pista que temos desta escolha, segundo Leibniz, é que tal opção por este mundo em detrimento de outros se deu porque o mundo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis. 

Mas por que o mundo físico circundante é o melhor dos mundos possíveis? Talvez, por um motivo de economia de informação, seja o mundo que Deus mantém atuante com o mínimo de energia necessária para o seu funcionamento. Ou, ainda, poder-se-ia considerar o mundo físico como aquele com as leis estruturantes mais simples possíveis e, neste sentido, seria o mundo com a menor complexidade concebível. Enfim, as razões que levaram Deus a escolher este mundo e não outro podem ser encontradas através de explicações que, em certa medida, apelariam para a idéia de um Deus que opera em sua criação com a maior parcimônia possível: Deus opta por um mundo em que sua atuação não tenha que se dar a todo instante, a todo momento; Deus opta por um mundo com a maior autonomia possível, um mundo em que a necessidade de intervenções milagrosas seja mínima. Seja como for, Deus “escolhe” o mundo que é o mundo físico real, observável, e este mundo é o “melhor” deles – talvez, em sentido oposto à argumentação anterior baseada em um Deus da parcimônia e discreto, o fato de este mundo ser o melhor de todos resida no fato de ser o mundo que Deus mais ame e, por isto, o próprio Deus quira intervir a todo momento, de forma absurda e inexplicável; talvez este mundo seja o lugar em as epifanias e milagres mais aconteçam e, por esta razão baseda no amor de Deus, seja o melhor possível.

Mas como podemos entender, esquemática e limitadamente, como se dá a escolha do mundo real a partir de uma infinidade de mundos atuais que residem na mente de Deus? Um ponto a ser enfatizado nesta questão é o seguinte: sejam quais forem os motivos que levam a Deus a escolher este mundo em detrimento de outros, Deus “escolhe”, isto é, sua ação é livre e, como tal, não é determinada por um processo superior à sua vontade. Dito de outro modo, não é possível concebermos condicionantes da vontade de Deus que não sejam os seus propósitos: Deus age livremente com “estratégias” insondáveis ao intelecto humano. Portanto, qualquer que seja a forma como esquematizemos a criação do mundo, esta forma ou maneira tem de levar em conta a liberdade divina. 

Consideremos, então, um esquema para a criação do mundo inspirado na filosofia das mônadas de Leibniz. As mônadas, na concepção leibniziana, são átomos bem definidos de natureza espiritual que constituem a natureza das coisas. Segundo o próprio Leibniz:

A Mônada, da qual vamos falar aqui, não é senão uma substância simples, que entra nos compostos. Simples, quer dizer, sem partes (Leibniz, M.1, 1720).

Uma das consequências da simplicidade inerente às mônadas é seu caráter inextenso. Uma vez que as mônadas são pontos simples ou os átomos da natureza, então elas não tem extensão, posto que a extensão é uma característica daquilo que é composto de partes, e não do que é absolutamente indivisível. Conforme Leibniz:

Ora, onde não há partes, não há extensão, nem figura, nem divisibilidade possíveis. E tais Mônadas são os verdadeiros Átomos da Natureza e, em uma palavra, os Elementos das coisas (ibidem, M.4)

Desta forma, as mônadas são os elementos simples da natureza e que não têm extensão. Portanto, a diferenciação entre uma mônada e outra não se dá, então, por fatores externos como a figura ou a forma geométrica, mas através de um princípio interno de atividade. Cada mônada tem um dinamismo interno que lhe é próprio, e este dinamismo gera uma vida interna que se caracteriza por percepções e modificações; e é esta vida interna, a apetição, que é diferente em cada mônada, o princípio que imprime a identidade monádica (ibidem, M.7 = M.11). Além disto, as mônadas se organizam de tal forma que, dentre elas, algumas têm mais apercepção ou consciência de suas percepções, e outras têm menos. Entretanto, é bom que se frise, toda mônada tem uma atividade interna, a sua apetição, da qual algumas têm mais ou menos consciência. Neste sentido, podemos afirmas que Leibniz dotou os átomos constitutivos da natureza de atividade, de dinamismo, o que é algo em estrita oposição ao mecanicismo cartesiano que pressupunha o mundo físico como extensão material pura que obedece a leis geométricas que não levam em consideração qualquer tipo de dinamismo.

Deus cria uma infinidade de mônadas, e estas vêm de Deus por fulgurações. Desta forma, as mônadas surgem por Deus, e Deus é a causa primitiva de todas as mônadas. Cada mônada deve seu ser a Deus, e Deus é a mônada primeira de onde todas as outras surgem por emanação ou espraiamento. Conforme Leibniz:

Assim, apenas Deus é a unidade primitiva, ou substância simples originária da qual todas as Mônadas criadas ou derivadas são produções, e nascem, por assim dizer, por Fulgurações contínuas da Divindade de momento em momento, limitadas pela receptividade da criatura, à qual é essencial ser limitada (ibidem, M.47).

Leibniz propõe uma configuração metafísica em Deus cria as mônadas por fulgurações contínuas. O que parece ser sugerido por Leibniz ao usar a expressão “contínua” é o fato de Deus criar o dmundo a cada momento: a cada instante de tempo, um “jorro’ de mônadas é espalhado de Deus para o mundo, e tal espalhamento garante, por assim dizer, que um contínuo de mônadas, em com suas atividades internas, garanta o funcionamento do mundo com harmonia preestabelecida. 

A partir da criação e sustentação do mundo real, composto de mônadas simples e derivadas (mônadas compostas), vem a questão de saber se não haveria a possibilidade lógica de haver outros mundos distintos deste que se confunde com o nosso mundo observável. De fato, é perfeitamente concebível para Deus que ele emane ou cria sucessivamente mônadas diferentes destas que constituem as unidades simples da natureza. Também é perfeitamente plausível que as mônadas compostas sejam outras, se Deus houvesse concebido o mundo como diferente.

Mas Deus concebeu o mundo da forma como ele é por ser este mundo o melhor dos mundos possíveis: o mundo real é o mundo dos mundos possíveis, e o outros mundos dormitam atual e silentemente nos pensamentos de Deus tal qual palavras que nunca serão ditas.

Cabe salientar que Deus optou por este mundo, e não por outro, dotado do pleno exercício de sua infinita Liberdade, uma vez que esta decorre do fato da Vontade de Deus não ser determinada por nada que não seja a plena e infinita autoconsciência de si de que goza Deus. 


2) UMA PROPOSTA DE “CRIAÇÃO” DO MUNDO A PARTIR DE LEIBNIZ E CANTOR.

O que se segue nesta secção é uma proposta de criação metafísica do Mundo real a partir do esquema monadológico leibnizianao, assim como de alguns elementos da teoria cantoriana dos conjuntos. Comecemos com a hipótese de que Deus cria uma quantidade infinita e enumerável de mônadas. Segundo se sabe da teoria de Cantor sobre os números transfinitos, sob tal hipótese, a cardinalidade das mônadas criadas por Deus é $\aleph_{0}$. Esta quantidade infinita de mônadas não emanaria a todo momento de Deus como é dito por Leibniz, mas em único instante, um instante ou situação puramente metafísica, um início absoluto que se dá na mente de Deus e cujo funcionamento fenomenológico nos é completamente inacessível, posto que conhecer a natureza deste contexto fenomenológico implicaria em conhecermos a consciência de Deus, o que em tese é impossível ao homem

Dada esta quantidade inicial e infinita de mônadas, estabelece-se uma “configuração metafísica” na qual todas as mônadas se relacionam com Deus como sendo suas criaturas. O que está sendo dito aqui é que cada mônada, de alguma forma, sabe ou sente em sua atividade interna que ela, a mônada em questão, foi criada por Deus. Dito de outro modo, Deus imprimiu em cada monada a sua marca, e as mônadas tendem a voltar-se a Deus em sua atividade interna; e é por meio desta reminiscência ou lembrança de Deus que as finalidades ou propósitos de cada mônada se fazem sentir nas atividades internas monádicas. Metafórica ou alegoricamente falando, todas as mônadas “reverenciam” a Deus como seu criador, e esta reverência se dá de forma consciente ou meramente com um sentir no qual se percebe alguma teleologia. 

Por sua vez, Deus, o criador, se vê como o autor das mônadas e, por amor (um Amor infinito que seria a atividade superior que somente Deus tem) ele se relaciona com todas as mônadas. Pode-se-mesmo dizer que Deus vê ou apercebe todas as mônadas como “criaturas” que dele dependem, e assim se estabelece o vínculo de Criador absoluto de tudo que existe. Desta forma, enquanto as mônadas se vêem com criaturas de Deus, Deus se apercebe como Criador, e é o seu Amor infinito e onipotente – a garantia de sua absoluta Vontade livre e criadora – que perpassa cada mônada criada. Desta forma, as relações “$x$ é criatura de $y$” e sua inversa “$y$ é criador de $x$” estão na base metafísica da criação do mundo.

A partir desta configuração que se estabelece com as relações acima citadas, surge a questão de como Deus cria o mundo real. O que é proposto aqui difere da proposta leibniziana, embora compartilhe a base conceitual de Leibniz. Uma vez que haja uma quantidade $\aleph_{0}$ mônadas, Deus pode agrupá-las, em sua totalidade, uma quantidade contínua de vezes, e cada unidade deste arranjo é um mundo possível. Cabe notar que cada sequência de mônadas constitui um mundo possível de medida nula, posto que constituídos por uma quantidade infinita e enumerável de mônadas. Assim, os mundos possíveis, assim como as mônadas, são entes inextensos que estão situados na mente de Deus como pensamentos prontos e atuais. Mas como se operam os arranjos monádicos que Deus realiza nos silêncios insondáveis de seus pensamentos? Haveria alguma regra por meio da qual Deus ajunta as mônadas para formar mundos?

A tese que se toma aqui é a de que Deus, a partir do estoque inicial de mônadas, escolhe livremente as mônadas que constituirão um dado mundo possível – reiterando, cada mundo possível é sequência de mônadas. Após um mundo possível estar completo, Deus forma outro mundo escolhendo outro mundo da forma que ele, Deus, bem entender. Logicamente, Deus pode formar por este processo uma quantidade $2^{\aleph_0} = c$ de mundos, sendo c igual à cardinalidade do contínuo, e não nenhuma limitação ontológica que possa ser atribuída a Deus que lhe impeça de gerar todos estes mundos, de uma vez, em seu pensamento absurdamente infinito. Assim, uma vez de posse deste contínuo de mundos possíveis, Deus escolhe o melhor dos mundos possíveis, que nada mais é do que uma sequência de mônadas (um conjunto de medida nula, cabe ressaltar) a partir do qual os propósitos de Deus serão otimizados em sua criação.

Assim, este esquema metafísico da criação do mundo, baseado em Leibniz e temperado com a teoria dos números transfinitos de Cantor, apresenta a onipotência de Deus operando dentro da sua mais perfeita liberdade e providência: o melhor dos mundos é escolhido para ser o mais ótimo do contínuo dos mundos possíveis.


3) UM ESQUEMA MATEMÁTICO PARA A “CRIAÇÃO” DO MUNDO.

Assumamos a tese, metafisicamente muito forte, de que existem infinitas mônadas Também admitamos que a cardinalidade da totalidade destes mundos, totalidade esta que denotaremos por $\textbf{M}$, tenha cardinalidade igual a $\aleph_{0}$. 

A partir de uma linguagem $L$, podemos nomear cada mônada. Dentre estas mônadas, tomemos uma mônada M de tal forma que possamos estabelecer a função constante:

$f : \textbf{M} / \{$M$\}\rightarrow$ M.



Partamos do pressuposto de que a linguagem $L$ disponha do operador $\varepsilon$ (operador épsilon). Desta forma, podemos definir a expressão (x) como sendo:

$\blacklozenge (x) \equiv_{df} \varepsilon x.f^{-1}($M$,x)$.



De alguma maneira, $\blacklozenge (x)$ caracteriza a “superfície de nível” de M em relação ao conjunto dos mônadas.

Sabemos que a referência do operador $\varepsilon t. \mathrm{\varphi} \hspace{1mm} (t)$ consiste do termo $t$, tal que $\mathrm{\varphi} (t)$ é verdadeira em $\chi$, sendo $\chi = <\textbf{M}, I>$ uma estrutura definida a partir da linguagem $L$. Se mais de um termo em $M$ satisfizer a $\varepsilon t. \mathrm{\varphi} (t)$, então a referência de $\varepsilon t. \mathrm{\varphi} (t)$ é, segundo a definição usual do operador $\epsilon$, qualquer termo que satisfaça $\mathrm{\varphi} (t)$, tomado arbitrariamente. Neste caso, se houver infinitos termos que satisfaçam $\mathrm{\varphi} (t)$, então $\varepsilon t. \mathrm{\varphi} (t)$ é equivalente a uma função escolha. 

No caso de 

$\blacklozenge (x) \equiv_{df} \varepsilon x.f^{-1}($M$,x)$,

todas as mônadas satisfazem a $\blacklozenge (x)$. Deste modo, $\blacklozenge (x)$ é equivalente a uma função escolha que pode tomar por valor, não-deterministicamente, qualquer mônada. De alguma forma, portanto, a relação $\blacklozenge (x)$, aplicada um número infinito de vezes ao conjunto sucessivos $\textbf{M}/ \{$M$, \}$, dá origem a uma sequência:

$M_{1} = <m_{1}, m_{2}, m_{3}, ... >$.

Chamemos $M_{1}$ de um mundo possível.

Uma vez sendo atingida a compleição de $M_{1}$, então uma sequência de mundos possíveis $M_{1}, M_{2}, M_{3}, ...$ pode ser gerada. Cada mundo $M_{i}$ é gerado de forma estritamente análoga à geração de $M_{1}$. Sob a hipótese de que, para todo $k,l,$ tem-se que $M_{k} \neq M_{l}$, e que então a quantidade de mundos possíveis existentes é igual a $2^{\aleph_0}$, e o conjunto

$\prod = \{ M_{1}, M_{2}, M_{3}, ..., M_{\varepsilon},... \}$,

sendo e um número ordinal da terceira classe de números, é o contínuo ordenado de mundos possíveis. Por sua vez, o conjunto $2^{\prod}$ será denominado de hiper-contínuo de mundos possíveis.

A partir de $\prod$, mediante uma “estratégia para a obtenção” do melhor dos mundos possíveis, toma-se um mundo $M_{a}$. a partir da relação

$\varepsilon x. \forall y_{\in \prod} \hspace{1mm} (y \preceq x)$.

De fato, $M_{a}$ é o termo buscado pelo operador $\varepsilon$ na relação acima, em que “$y \preceq x$” significa que $y$ é inferior a $x$.

A partir de $M_{a}$., um contínuo de pontos pode ser gerado a partir de $\prod^{*} = 2^{M_a}$, e todas as medidas possíveis deste conjunto (medidas de Lebesque) serão obtidas em subconjuntos de $2^{\prod^*}$. 



O ESPAÇO METAFÍSICO DA CRIAÇÃO DO MUNDO.

Onde se dão as emanações que originam o mundo? A resposta a esta pergunta será dada a partir da tese de que há uma “distância” entre a mônada superior e o restante das mônadas. Além disto, a relação equívoca que se dá entre a mônada superior e as outras mônadas será tomada como um arquétipo de causalidade metafísica que atua instantaneamente. Para relembramos, foi dito anteriormente que a mônada superior, Deus, é “reverenciada” como origem da criação (O Deus criador) por todas as demais mônadas através da função constante:

$f : \textbf{M} / \{$M$\} \rightarrow$ M.

A função f´é a função participante e indica que o “ser” das mônadas, entes criados, dependem do “ser” de Deus. Por sua vez, a relação inversa:

$f ^{-1} : \{$M$\} \rightarrow \textbf{M} / \{$M$.\}$

é a relação de “participação” de Deus com as mônadas. Em síntese, a participação nos diz que Deus, ente supremo, doa seu ser às monadas por meio de uma causalidade cuja dinâmica se dá no próprio intelecto de Deus e que, portanto, dado que Deus transcende o mundo físico, é da ordem do sobrenatural.

Como foi visto também em momento anterior, Deus, através de suas infinitas escolhas cuja tradução para a linguagem lógica é a relação 

$\blacklozenge (x) \equiv_{df} \varepsilon x. f^{-1} ($M$, x)$

gera o contínuo de mundos possíveis

$\prod = \{ M_{1}, M_{2}, M_{3}, ..., M_{\varepsilon}, ...\}$.

Assim, temos que, para cada mundo possível $M_{k}$, a relação de participação com Deus criador é dada por:

$\{$$\hspace{1mm} \} \rightarrow \blacklozenge_{\omega}(x) \hspace{1mm} M_{k}$

de tal forma que $\blacklozenge_{\omega}(x)$ indica que o mundo $M_{k}$ foi gerado por meio uma sequência de escolhas de Deus de tipo-$\omega$. Portanto, o conjunto $\prod = \{ M_{1}, M_{2}, M_{3}, ..., M_{\varepsilon}, ...\}$ participa de Deus na relação:

$\{$$\hspace{1mm} \} \rightarrow \blacklozenge_{\varepsilon : \hspace{1mm} \omega}(x) \hspace{2mm} \prod = \{ M_{1}, M_{2}, M_{3}, ..., M_{\varepsilon}, ...\}$

em que e é um número ordinal transfinito da segunda classe de números. 

Como já foi visto, podemos gerar o conjunto $\prod^{1}$ a partir de $2^{\prod}$ e, assim, a sequência

$\prod < \prod^{1} < \prod^{2} < ... < \prod^{n} < ...$

Os termos desta sequência, com superíndices $n \geq 1$, são chamados de hipercontínuos de mundos possíveis. 

Tanto o contínuo $\prod$ quanto os hipercontínuos $\prod^{n}$, com $n \geq 1$, são conjuntos com medida diferente de zero e, como tais, são grandezas extensivas.

A fim de derivar o contínuo $F$ do espaço-tempo, admitamos a tese de que Deus escolheu o melhor dos mundos possíveis $M_{a}$. (e esta escolha é representada na lógica pela relação $\varepsilon x. \forall y_{\epsilon \prod} (y \preceq x)$), e o contínuo resultante desta escolha é igual a

$F = 2^{M_a}$.

Tal contínuo participa de Deus através da transitividade das seguintes relações:

$((\{$M$\hspace{1mm}\} \rightarrow \varepsilon x. \forall y_{\epsilon \prod} \hspace{1mm} (y \preceq x) \hspace{1mm} M_{a}) \hspace{2mm} \wedge \hspace{2mm} (M_{a} \rightarrow 2^{M_a} \hspace{1mm} F)) \hspace{2mm} \rightarrow \hspace{2mm} (\{$M$\hspace{1mm}\} \rightarrow \varepsilon x. \forall y_{\epsilon \prod} \hspace {1mm} (y \preceq x); \hspace {1mm} 2^{M_a} F)$.

O puro contínuo do espaço-tempo está no pensamento divino sob a forma do conjunto potência do “melhor dos mundos possíveis”. Chamemos $2^{M_a}$ de a primeira emanação de Deus. De fato, posto que $2^{M_a} \hspace{2mm} \cap \hspace{2mm} \prod \hspace{2mm} \neq \hspace{2mm} \emptyset$, então esta emanação inicial de Deus não se distingue perfeitamente como mundo físico ou atual, uma vez que há uma fronteira em $2^{M_a}$ com aquilo que é possível na mente de Deus.

Podemos afirmar que há uma causalidade metafísica que explica o surgimento de $F = 2^{M_a}$ a partir de Deus (a chamada mônada superior M ). A explicação metafísica para o surgimento de $F = 2^{M_a}$ (no caso, falar em causalidade física é um anacronismo, posto que o mundo físico, como “topografia dos fenômenos observáveis”, ainda não surgiu matematicamente). Tal esquema metafísico é baseado puramente na relação de participação que Deus tem com os entes criados, e o princípio de derivação dos entes criados demanda, uma vez que Deus é tomado como radicalmente transcendente em relação ao que é físico ou espácio-temporal, que Deus esteja posicionado absolutamente fora de qualquer relação espácio-temporal possível.

Avante, "Toscos"!

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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

"TOSQUEIRA" 3: A Matemática do Infinito e a Teologia Cristã – uma aproximação.

Walter Gomide.

Em várias estruturas algébricas da matemática, temos as figuras dos elementos neutro e simétrico. Tomando a adição como exemplo, a relação entre estes elementos se dá na afirmação geral de que, dado um elemento x de um domínio de objetos, existe o simétrico $(-x)$ tal que:

$x + (-x) = 0$,

sendo $0$ o elemento neutro.

Visto pictoriamente, o simétrico de um elemento $x$ é o caminho que devemos percorrer para voltarmos à origem $0$, após um deslocamento igual a $x$. Sendo assim, o simétrico restitui o que é devido e, com esta restituição, voltamos ao ponto $0$ de uma dada situação algébrica; este ponto $0$, por sua vez, indica um estado originário ou um acréscimo que em nada altera uma configuração determinada: o elemento neutro representa, por assim dizer, a resultante de forças que mantém uma configuração na sua mesmidade originária (criação imagético-conceitual bem “tosca”, mas, creio eu, com valor heurístico).

Portanto, para os domínios de objetos que se assemelham entre si por força de serem, em algum grau, ilustrados por esta imagem geométrica de deslocamentos com seus termos reversíveis, tais como as forças da física clássica ou a aritmética dos números reais, a presença dos elementos simétricos e nulo é quase que imediatamente verificada: onde houver vetores orientados de alguma maneira haverá simetria e o consequente elemento neutro; onde houver a imagem dos eixos definidores de imagens especulares haverá elementos simétricos ou neutros.

Mas como se comportariam tais espelhos com seus elementos reversos se houvesse objetos refletidos de tamanho infinito? Em outras palavras, o que esperar da expressão

$x + (-x) = x – x$,

quando $x$ for infinito?

Podemos responder a tal questão de duas maneiras distintas. Em primeiro lugar, é possível admitir, como é feito na álgebra dos números surreais ou dos números hiper-reais, que a infinitude dos objetos envolvidos em nada altera o espelho fundamental que determina a simetria e o elemento neutro e, assim, teríamos que para os números infinitos $\infty$ (aqui o símbolo “$\infty$” é usado como uma variável cujo campo de atuação é qualquer número infinito; em geral, tais números são os transfinitos de Cantor, tomados em sentido ordinal, que são vertidos para a aritmética dos surreais ou dos hiper-reais), vale o seguinte:

$\infty - \infty = 0$

Desta forma, as presenças do simétrico e do elemento neutro são garantidas para os números infinitos, vistos aqui como vetores cujos módulos ultrapassam qualquer módulo de vetores finitos.

Entretanto, podemos admitir, assim como fez Cantor na sua teoria original sobre os cardinais transfinitos, que o espelho aritmético falha ao refletir as imagens de números infinitos e, portanto, temos que:

$\infty - \infty \neq 0$.

Mais especificamente, sendo $\infty$ um número cardinal transfinito, o resultado de $\infty - \infty$, na aritmética cantoriana dos números cardinais transfinitos, em geral é indeterminado: a subtração na aritmética de Cantor é uma operação que não é totalmente definida; ela é falha na presença de argumentos transfinitos.

Conclui-se disto que o espelho no mundo dos transfinitos de Cantor esfumaça a simetria e o consequente elemento neutro: no infinito, a bela imagem de vetores de sentidos opostos e de mesmo módulo e direção se anulando e voltando a uma origem fundante, uma espécie de tensão dialética reparadora, não cabe; os vetores infinitos não se anulam e, ao contrário, geram nuvens de indeterminação que não tem nome no vocabulário aritmético transfinito.

Entretanto, existe a possibilidade de nomearmos inequivocamente tal nuvem, e esta possibilidade encontramos na aritmética dos números transreais, domínio numérico que foi criado por James Anderson, cientista inglês da computação, por volta de 1995 (cabe aqui ressaltar que eu tenho a honrar de ser um dos divulgadores dos transreais no Brasil, além de ser, juntamente com Tiago Reis e o próprio James Anderson, um dos criadores da semântica total e do hiperespaço proposicional baseado nos transreais). Nos números transreais, introduzimos três constantes fundamentais, a saber:

a) $1/0 = \infty$;

b) $-1/0 = - \infty$;

c) $0/0 = \Phi (Nullity)$.

Os números $1/0$ e $-1/0$, respectivamente, são vetores de sentidos contrários, mesma direção e de tamanho absolutamente infinitos: são infinitos maiores do que qualquer transfinito cantoriano e, neste sentido, se uma vez fossem traduzidos à teoria dos conjuntos, seriam representativos de quantidades infinitas que não podem ser superadas por nenhum outro infinito passível de ser apresentado com um transfinito (talvez fosse o caso de ver tais infinitos, $1/0$ e $-1/0$, como classe próprias no sentido de Von Neumann). Por seu turno, o $0/0$ é um número indicativo da superposição de todos os números reais – ele é o resultado da expressão $0 = 0x$, o que equivale dizer que ele aponta para todos os reais ao mesmo tempo: trata-se de um número equívoco, um objeto novo na ontologia da matemática, posto que pode ser visto como o amálgama de todos os reais, o número que condensa em si todos o domínio dos números reais: um apéiron matemático que não pode ser comparado com nenhum outro número e que, através de qualquer operação matemática definida, comporta-se como um elemento que absorve qualquer número: nullity mais qualquer coisa é nullity, nullity vezes qualquer coisa é nullity, nullity dividido por qualquer coisa é nullity, e assim por diante. Cabe dizer também que nullity se situa na n-ésima coordenada de um espaço projetivo em cujas $(n-1)$ -ésimas coordenadas está o restante dos transreais: nullity vê a totalidade dos transreais de fora, desconexo das relações de continuidade e de ordem presentes com os outros números; nullity, neste sentido, é um número aristocrático, nietzschiano, de onde se apercebem as outras entidades numéricas de forma sub specie aeternitatis. 

Além do mais, cabe dizer aqui que o espelho de Cantor, incapaz de gerar um nome para a indeterminação causada quando se colocam dois infinitos tensionados dialeticamente, dentro da aritmética transreal, consegue estabelecer um nome, um único objeto, para esta suposta indeterminação resultante da subtração de infinitos. Isto é, na aritmética transreal, vale a seguinte identidade:

$\infty - \infty = \Phi$.

E é justamente a partir desta identidade que a especulação alegórica entre Matemática e Teologia terá início. 

Partamos da narrativa cristã segundo a qual o Homem, inicialmente postado no paraíso em simbiose com Deus, foi retirado desta situação pelo pecado original, um pecado que representa uma falta ou um débito infinito em relação à sua condição inicial de Senhor ou Pastor do Paraíso – Adão, em síntese. Desta forma, consideremos que o Homem estava em $0$ e pelo pecado original foi lançado a $\infty$. Chamemos o deslocamento pecado original de $Or$. Temos então tal situação assim ilustrada em uma álgebra trans-vetorial:

$0 \hspace{2mm} \rightarrow_{Or} \hspace{2mm} - \infty$

Dado isto, como pode o Homem pagar sua dívida infinita e voltar ao Paraíso, ao estado $0$ de sua condição primeira? Se admitirmos que a aritmética dos infinitos é uma imagem alegórica da Teologia de matriz judaico-cristã, então a única maneira de ocorrer a volta ao estado de inteireza inicial é através do deslocamento simétrico $\infty$: o Homem salda o débito infinito e volta ao paraíso, e para pagar tal dívida é necessário que Deus –Pai, na figura do Ser infinito $\infty$, se ofereça como sacrifício; dai em diante, as aritméticas surreais e hiper-reais nos mostram a lógica da expiação:

$- \infty \hspace{1mm} \rightarrow_{\infty} \hspace{1mm} 0$

A expressão acima nada mais do que uma outra maneira de dizer que:

$\infty - \infty = 0$

Mas tentemos enfatizar o papel de Deus-Filho nesta lógica expiatória. Admitamos que Deus-Pai se oferece em sacrifício, mas que agora a alegoria matemática adequada para ilustrar tal processo é dada pela aritmética transreal. Neste caso, temos que:

$- \infty \hspace{2mm} \rightarrow_{\infty} \hspace{2mm} \Phi = 0/0$

A expressão acima (um outro modo de apresentar a identidade $\infty - \infty = \Phi$ nos diz que o sacrifício de Deus-Pai é igual a nullity. Como nullity pode ser visto como a superposição de todos os números reais, por analogia tomemos que nullity, nesta alegoria teológica (“toscamente” construída, diga-se de passagem), representa a superposição ou o almágama de todos os débitos individuais que foram pagos de uma só vez por Deus-Pai. Mas Deus-pai é o infinito $\infty$, e não hesito em chamar de Deus-Filho à figura matemática de nullity. Por conseguinte, o sacrifício de Deus-Pai não nos leva imediatamente ao Paraíso, à nossa inteireza inicial, mas sim ao Deus-Filho; é Ele que restitui a condição adâmica perdida; é Ele que nos leva ao estado $0$. 

Mas como Deus-Filho no leva de volta ao Paraíso? Resposta: pelo amor que Dele “procede”, uma função A que será “toscamente” chamada de “Espírito Santo”. Assim, temos:

$\Phi = 0/0 \hspace{2mm} \rightarrow_{A} \hspace{1mm} 0$

Aparece, então, a Cadência Tonal da Soteriologia Cristã, a saber:

$0 \rightarrow - \infty \rightarrow \infty \rightarrow \Phi \rightarrow_{A} 0$

Começamos no Paraíso ($0$) e de lá nos afastamos infinitamente ($- \infty$). Depois, Deus-Pai se oferece em Sacrifício para saldar nossas dívidas, e estas são pagas no sacrifício de Deus-Filho (F); Este, por sua vez, pela ação do Espírito Santo, nos leva de volta ao Paraíso (0). E o pressuposto fundamental desta triangulação que nos leva de volta ao Paraíso é a Santíssima Trindade:

$<\infty, \Phi, A>$,

A qual eu tomo como sendo definida por:

$<\infty, \Phi, A> \equiv_{df} \hspace{2mm} <\infty = \Phi>$,

o que nos dá a seguinte equivalência entre as lógicas expiatórias de natureza surreal e transreal:

$0 \rightarrow - \infty \rightarrow \infty \rightarrow \Phi \rightarrow <\infty = \Phi> 0 \equiv 0 \rightarrow - \infty \rightarrow \infty \rightarrow 0$

Mas deixemos tais Cadências, muito esquemáticas e quase que criptográficas, para uma outra tosqueira. Por enquanto, é suficiente ter em mente que a Matemática dos Infinitos, sejam estes surreais ou transreais, são alegorias da Soteriologia Cristã. Levemos em conta também que Nullity, este número não-finito que se comporta como nome equívoco, pode ser associado, segunda a minha “tosquice” permite ver, à figura do Cristo.

Avante, “Toscos”!

terça-feira, 18 de outubro de 2016

"TOSQUEIRA" 2: Einstein, Bergson e a Cardinalidade dos Referenciais.

Walter Gomide

Quantos referenciais existem? Esta pergunta (talvez, aos olhos de físicos profissionais, completamente desprovida de sentido – no entanto, para “toscos” de plantão, de suma relevância) será respondida com o auxílio da “querela Einstein-Bergson”.

Em 1922, em uma conferência dada no Collége de France a convite de Paul Langevin, Einstein foi interpelado por Henri Bergson, então a maior sumidade filosófica francesa, para explicar e discorrer sobre o tempo. Em grandes linhas, a interpelação de Bergson se deu no sentido de mostrar que não havia contradições entre o tempo durée de Bergson, o tempo contínuo e indiviso da consciência, e o tempo espacializado da teoria einsteiniana: ao contrário, as duas concepções de tempo eram auxiliares entre si e apontavam para a existência de um tempo universal, tempo este captado e intuitivamente vivido pelo senso comum sob a forma de “tempo da consciência”, um tempo que se espalharia da consciência vivente do indivíduo aos confins da “Consciência criadora” do próprio Universo físico.

Mas eis que Einstein, após ouvir “atentamente” as digressões de Bergson, responde ao filósofo francês, de forma breve e incisiva, apontando para o fato de que não há um tempo físico com as características da durée bergsoniana: o que há, fisicamente falando, é o tempo métrico dos relógios, e a duração de Bergson seria um tempo psicológico sem nenhuma relevância física, embora este tempo “da alma” seja a “matriz inspiradora” do tempo físico, principalmente no que diz respeito ao conceito de simultaneidade de eventos.

Posto isto, tentemos responder à questão de saber quantos referenciais existem usando algumas ferramentas criativas (“toscas”, melhor dizendo) que são derivadas tanto da teoria da relatividade de Einstein, geral ou restrita, quanto da concepção bergsoniana de tempo duração; a ponte que fará a ligação entre estes dois mundos heurísticos é a imagem-conceito de “Observador”.

Na relatividade, temos os referenciais, em relação ao quais as leis da física são invariantes. Chamemos um referencial de $S$ e consideremos que um referencial define uma quádrupla $<0; 0; 0; 0>$ que indica as coordenadas de origem deste referencial: a posição do espaço-tempo de onde o referencial fará suas medições. De fato, além da quádrupla $<0; 0; 0; 0>$ - daqui em diante, denominada de $<0>$ -, um referencial tem associado a si um conjunto de medições $M$. Tal conjunto pode ser visto com uma série de aparatos de medida, como relógios e réguas, que instanciam as regras e os teoremas relacionados ao conceito de medida matemática na acepção de Lebesgue. Assim, a um referencial $S$, um conceito da física em geral, mas que é proeminentemente decantado como de fundamental importância teórica na relatividade einsteiniana, associemos a dupla:

$S = < < 0 >; M >$

Passemos a Bergson e à sua Durée. A duração ou Durée é o tempo que permeia os dados da consciência: é o invólucro do campo perceptual do ser consciente, além de se expandir como o fluxo contínuo das vivências interiores; estas “distensões da alma”, as vivências interiores, são o que aparece à consciência como passado ou futuro – como diria o Santo de Hipona -, ou mesmo como o pano de fundo de qualquer ato imaginativo; engloba também a atenção, o presente percebido como realidade imediata dos dados sensíveis. Chamemos esta duração e seu campo perceptual de $P_{d}$.

Todavia, esta duração com seu campo perceptual não está abstratamente posta como uma Nuvem de Averrois solta no espaço-tempo; o elemento $P_{d}$ pertence a um corpo, uma instância que é a sede de todas as imagens ou representações que estão presentes em $P_{d}$; chamemos tal corpo de $p$. Ao par $<p; P_{d}>$, denominemos de “sujeito” ($Suj$), isto é:

$Suj = <p; P_{d}>$.

Façamos agora uma analogia entre as estruturas $Suj$ e $S$. A estrutura bergoniana $Suj$ tem um corpo de onde o sujeito se orienta e por onde acontecem as representações; o referencial $S$ de Einstein tem as coordenadas $<0>$, a posição no espaço-tempo de onde ele, o referencial $S$, estabelece o horizonte de Eventos. Consideremos também que o campo perceptual e seu envoltório contínuo e indiviso, aqui denotados de forma amalgamada por $P_{d}$, se relaciona com o campo das medidas $M$ de $S$: as medidas $M$ de $S$ são uma coleção de proposições que atribuem um valor numérico (um número real) a grandezas físicas que são operacionalizadas através de procedimentos instrumentais perceptualmente verificados e compartilhados em uma linguagem que garante a tais procedimentos a sua objetividade; o contínuo e inexprimível $P_{d}$ se converte em um campo enumerável de medições, sendo que estas são proposições de identidade entre operações que atualizam funções de medida, conceito matemático aplicado a grandezas físicas, e números reais adequada e fisicamente dimensionados.

Vale dizer também que, nas imediações de $<0>$, o referencial $S$ faz suas medições dentro de um invólucro matemático de $<0>$ que define um conjunto contínuo: a métrica de Riemann, uma estrutura diferencial cuja expressão matemática é:

$ds^{2} = g_{\mu \nu} \quad dx^{\mu} dx^{\nu}$

um somatório em relação aos índices $\mu$ e $\nu$ (trata-se de uma convenção feita por Einstein, a sua “grande realização em matemática”, segundo suas próprias palavras). No caso do espaço-tempo da relatividade restrita, o espaço de Riemann se converte no espaço de Minkowski cuja métrica é:

$ds^{2} = dx^{2} + dy^{2} + dz^{2} - c^{2}dt^{2}$,

métrica esta que define as regiões tipo-tempo, tipo-luz e tipo-espaço, pictoriamente dadas no famoso “cone de luz”, uma das mais belas imagens que Deus tem de uma das suas criações (assunto para outra “tosqueira”...).

Portanto, o termo bergsoniano $P_{d}$ encontra seu correlato em $S$ nas medições efetuadas nas imediações de sua métrica, o envoltório contínuo da posição $<0>$.

Agora, voltemos à questão de saber quantos referenciais existem. A resposta a esta questão se dá de forma muito simples, dado que qualquer ponto do espaço-tempo é um potencial “trono” de onde o referencial mede. Sabemos, da teoria cantoriana dos conjuntos, que o contínuo tem cardinalidade igual a $c = 2^{\aleph_0}$, em que $2^{\aleph_0}$ é a exponenciação com base $2$ e com potência igual à cardinalidade dos números naturais. Sendo assim, então a resposta está dada a esta pergunta periférica da relatividade de Einstein:

Existem $c = 2^{\aleph_0}$ referenciais na teoria da relatividade de Einstein!

Mas, e daí? O que isto importa? Tentemos dar relevância a esta tese sobre a cardinalidade dos referenciais einsteinianos através de uma função $Obs$ (a função “observador”) que estabelece uma conexão semântico-alegórica entre as estruturas $Suj$ e $S$. A função $Obs$, posto que função, nos diz que, para cada ponto do espaço-tempo (um autêntico referencial $S$), podemos associar um único sujeito bergsoniano, isto é:

$(\forall S) \hspace{1mm} (\exists ! \hspace{1mm} Suj) \hspace{1mm} (Obs (S) = Suj)$

Assim, a cardinalidade do conjunto-imagem da função $Obs$ é $\le c$. Entretanto, dado que os sujeitos bergsonianos são exemplificados nos sujeitos humanos – consciências “encarnadas” em corpos humanos que interagem entre si pela linguagem -, temos que a cardinalidade do conjunto composto pelas estruturas $Suj$ é um número finito $d$: devemos acreditar que a quantidade de seres humanos que existem, já existiram e ainda estão por existir, por maior que seja, é finita.

Mas associar a totalidade dos pontos do espaço-tempo, os referenciais, aos contingentes seres humanos, dispostos em historicidades confusas e metafisicamente dispensáveis enquanto imagens dos eternos e objetivos referenciais, realidades idealizadas de uma Natureza vista como engrenagem infinita, não parece ser a melhor opção. O melhor a fazer, creio eu em minha “tosquice” confessa, é admitir que a cardinalidade dos conjuntos das estruturas $Suj$ é igual a um, isto é, só há um único sujeito ao qual o contínuo dos referencias se associam por meio da função $Obs$, e este sujeito é um velho conhecido do filósofo de Königsberg. Disto vem a sugestão de um postulado “tosco” da epistemologia tratada aos moldes de uma doutrina transcendental do Conhecimento:

Todos os referencias da teoria einsteiniana estão associados a um único Sujeito, o Sujeito Transcendental kantiano, cujas formas a priori da sensibilidade são o espaço e o tempo, tempo este que é a “Durée” de Bergson.


Poderíamos dizer que o Sujeito Transcendental de Kant, munido da duração de Bergson, poderia ser substituído por Deus, ou mesmo pela Idéia de Homem. Entretanto, deixemos tais questões para uma “tosqueira” vindoura. Por enquanto, basta a tese de que todos os referenciais da relatividade são conceitos cuja imagem geratriz é a Subjetividade Transcendental. De fato, a Subjetividade Transcendental se espalha por todos os objetos que se assemelham entre si pela presença de uma vida interna orientada pela ação do tempo e espaço internos e da razão em sentido calculador ou preditivo (homens, anjos, deuses e o próprio Deus são semelhantes neste sentido), mas exclui de seu escopo de aplicabilidade aquilo que não tem tempo e espeço internos e nem uma linguagem a fim da intercomunicação – o inanimado ou inorgânico, por exemplo, estão fora do escopo de aplicação da bela imagem do Sujeito Transcendental cuja alma vibra como o Fogo de Heráclito...

AVANTE, “TOSCOS”!

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

“TOSQUEIRA” 1: A Doutrina das Semelhanças e uma imagem especular da Lógica Modal.

Walter Gomide

Walter Benjamim postula que é possível falar do que é invisível por meio de coisas visíveis. Assim, posso me referir ao mistério do fluxo do tempo por meio das imagens do rio que flui ou do fogo em seu dinamismo ígneo. De alguma forma, a possibilidade de nos referirmos às coisas por meio de outras que lhe são “semelhantes” é a base do pensamento metafísico, e é justamente esta metafísica por trás da “doutrina das semelhanças” que merece ser elucidada por meio de um discurso lógico adequado.


Sem dúvida, o colapso das semelhanças ou das analogias entre dois objetos $a$ e $b$ é a identidade no sentido fregeano: afirmar que $a = b$ é dizer que os objetos $a$ e $b$ têm a mesma referência e modos de apresentação (sentidos) distintos. Mas, antes de haver esta identidade de referentes entre $a$ e $b$, há uma identidade mais fraca que se dá segundo um conceito ou propriedade. Esta identidade é a que se usa como base para o discurso conceitual, de tal forma que a cópula “é”, indicativa de tal identidade, é sinonímia da constante "$\in$" da teoria dos conjuntos. Assim, se digo que dois objetos são semelhantes ($a \approx b$) quero afirmar com isto que há pelo menos um conceito $C$ tal que $Ca$ e $Cb$: tanto $a$ quanto $b$ participam do conceito $C$, isto é, $a \in C$ e $b \in C$. Para que tal semelhança se transforme em identidade, então haveria a necessidade de que, para todo conceito $X$, tivéssemos o seguinte:


$Xa \leftrightarrow Xb$.

Temos assim a famosa lei de Leibniz para a identidade entre objetos:

$(\forall X) (\forall x) (\forall y) (x = y \leftrightarrow (Xx \leftrightarrow Xy))$

A definição de semelhanças entre objetos seria dada da forma seguinte:

$(\forall x) (\forall y) (x \approx y \leftrightarrow (\exists X) (Xx \leftrightarrow Xy)$

Assim, em lógica de segunda ordem, temos de forma clara critérios tanto para a identidade quanto para a semelhança entre objetos.

Mas até que ponto esta semelhança lógica em segunda ordem capta o sentido propriamente metafísico da doutrina das semelhanças de Walter Benjamin? O texto de Benjamin sugere que, antes que eu possa afirmar proposições que afirmem a semelhança de $a$ e $b$ em nível lógico ou conceitual, devemos admitir a semelhança entre $a$ e $b$ no nível imagético ou representacional. De fato, qual o conceito objetivo comum à chama que continuamente vibra e à estrutura do tempo? Ou ainda: o que há de comum, sob o ponto de vista conceitual ou objetivo, entre o infinito e o céu estrelado de Kant? Provavelmente, a resposta a estas duas questões seria um rotundo “nada”! Mas não há dúvida de que as semelhanças que verificamos nestes casos se dão entre as “imagens ou representações” que temos destas realidades tão distantes entre si sob o ponto de vista lógico ou conceitual.

Surge assim a possibilidade de tratarmos a semelhança não através de conceitos, mas sim por meio de representações ou imagens (doravante, imagens ou representações serão designadas por $R$). Uma imagem ou uma representação é um arquétipo imagético, algo como o início de um dado conceito – neste sentido, as representações $R$ são a “velha metáfora” cujo resíduo, segundo Nietzsche, daria origem a um conceito CR

A fim de dar um tratamento lógico às doutrinas das semelhanças, iniciemos com a lógica modal $K$, em que uma interpretação é dada por

$I = <W, R, v>$,

onde $W$ é um conjunto de mundos possíveis, $R$ é a relação de acessibilidade tal que $R \subseteq W \times W$, e $v$ é uma função de valoração. A partir de $I$, estipulemos uma interpretação $U$, definida em uma lógica $K'$ que é uma "imagem especular de $K''$, tal que:


$U = <\sum, \approx, h>$


$\sum$ é um conjunto de objetos quaisquer, $\approx$ é a relação de semelhança entre eles, e $h$ é uma função de aplicabilidade das imagens $R$ a objetos ($h$ é estritamente análoga a $v$, sendo que $h_{a} (R) = 1$ significa que a imagem $R$ é aplicável a $a$, e $h_{a} (R) = 0$ significa que a imagem $R$ é não-aplicável a $a$).

Definamos agora, em estrita analogia com as definições de “necessariamente $A$ é verdadeiro” ($\Box A$) e “possivelmente $A$ é verdadeiro” ($\Diamond A$),  as noções de “imagem $R$ é fortemente aplicável a um objeto $\alpha$” e “imagem $R$ é fracamente aplicável a um objeto $\alpha$”. Temos então:

$R$ é uma imagem fortemente aplicável a $\alpha$ (em símbolos: $\ll _{\alpha} \uparrow R$, em que " $\ll _{\alpha}$ " significa aplicável ao objeto $\alpha$, e “$\uparrow$” significa fortemente) se, e somente se:

1) Para todo objeto $\beta$, tal que $\alpha \approx \beta$, é o caso de $\ll _{\beta} R$ ("$\ll _{\beta} R$" significa que $R$ é aplicável a $\beta$).

Por sua vez, a imagem $R$ é fracamente aplicável a um objeto $\alpha$ ($\ll_{\alpha} \downarrow R$) se, e somente se:

2) Existe um objeto $\beta$, tal que $\alpha \approx \beta$, é o caso de $\ll_{\beta} R$.

Dado um domínio $\sum$ de objetos, escolhamos dentre eles o objeto $\alpha$. Verificamos que a imagem $R$, uma vez sendo fortemente aplicável a $\alpha$, pode relacionada a todo objeto $\beta$ que é semelhante a $\alpha$. Assim sendo, a imagem $R$ corre por todos os objetos que são “familiares a $\alpha$” sem excluir nenhum deles: a imagem $R$ não determina uma região de exclusão; ela não determina ou indica o uso lógico da “negação”, posto que $R$ se aplica a todos os objetos que se assemelham a $\alpha$.

Por sua vez, quando $R$ é fracamente aplicável a $\alpha$, $R$ se aplica a alguns objetos semelhantes a $\alpha$, mas não necessariamente a todos. Se enfatizarmos que da possibilidade não chegamos à necessidade, isto é, se impusermos a cláusula de que $R$ é fracamente aplicável a um dado objeto e simultaneamente não é fortemente aplicável a este mesmo objeto, então $R$ define uma região de exclusão, e assim configura um conceito em sentido lógico, posto que $R$ se permite negar: há coisas às quais $R$ não se aplica - existem os não-$R$´s.

Destas observações, podemos postular um critério pelo qual uma imagem $R$ engendra um conceito (em símbolos, $R ⋑ C$, em que “$R ⋑ C$” nos diz que $R$ engendra o conceito $C$). Tal critério é o seguinte:

$(R ⋑ C) \leftrightarrow (\exists \alpha_{\in \sum}) (\ll_{\alpha} \downarrow R \wedge \neg (\ll_{\alpha} \uparrow R))$.

Uma imagem é alçada à categoria de conceito quando ela é delimitada sob o ponto de vista de sua aplicação: ela não pode ser predicada de todos, mas apenas de alguns. Na qualidade de um conceito, uma imagem tem de ser negada em relação a pelo menos um objeto: devem existir os que não são $R$, pois isto é o prenúncio de que o conceito $C$ que $R$ engendra estará subordinado aos princípios de não-contradição e o do terceiro excluído – a questão das lógicas não-clássicas e suas imagens geratrizes é tema para outra “tosqueira”...

Falemos agora um pouco sobre o pano de fundo das idéias desenvolvidas nesta primeira “tosqueira’: a noção de semelhança conforme Walter Benjamin a considera. Afinal de contas, quando dois objetos são semelhantes módulo Benjamin?

Sob o ponto de vista lógico, como visto anteriormente, dois objetos são semelhantes se há pelos menos um conceito comum por eles compartilhados. Neste sentido, conforme a lógica “especular” encarnada na tripla $U = <\sum, \approx, h>$, a semelhança lógica entre objetos ocorre se as imagens geratrizes dos conceitos compartilhados por tais objetos são representações fracamente aplicáveis a tais objetos. Isto quer dizer, em outras palavras, que há objetos semelhantes aos objetos iniciais da análise aos quais a imagem geratriz dos conceitos não se aplica; e se a imagem não se aplica, os próprios conceitos que garantem a semelhança não se aplicam, o que acarreta a antinomia que afirma que dois objetos são semelhantes se, e somente se, não forem semelhantes.

Entretanto, tal antinomia é facilmente evitada, na teoria das semelhanças de Benjamin, se estivermos atentos ao fato de que a semelhança da qual Benjamin fala não é conceitual, mas de natureza metafísica ou essencialmente imagética: o que garante a semelhança universal entre os objetos é a existência de uma imagem comum aplicável a todos os objetos.

Analisando tais fatos dentro da lógica especular $K´$, as coisas se dariam assim: primeiramente, estipulemos a semelhança universal entre os objetos através do postulado de que, para quaisquer objetos $x$ e $y$, $x$ é semelhante a $y$ ($x \approx y$). Dito de outra maneira, o postulado da semelhança universal afirma a existência de uma imagem que se aplica fortemente a todos os objetos, isto é: 

$(\forall x) (\forall y) (\exists Z) (\ll_{x}   \uparrow Z   \wedge   \ll_{y}   \uparrow Z)$

Chamemos a imagem $Z$ de $[d/dt]$ (uma alusão óbvia ao cálculo diferencial e ao dinamismo ontológico de Heidegger expresso à la Deleuze). Com tal imagem, temos um critério para a semelhança entre objetos, a saber:

$(x \approx y) \leftrightarrow [d/dt] (x) \wedge [d/dt] (y)$.

Portanto, é lógico que, para todo $x$, temos que: 

$\ll_{x} \uparrow [d/dt]$

Mas o que é a imagem $[d/dt]$? A resposta é simples: é a imagem do Ser, a imagem ontológica mais fundamental que aglutina todos os entes (objetos) sob a ótica da semelhança. E tal imagem não gera conceito, mas é intrinsicamente um amálgama imagético que se aplica há tudo que há e que garante a similaridade de todas as coisas; é um princípio de unidade do real e, como tal, é metafísico – a imagem metafísica por excelência. 

E quanto ao oposto do Ser? Chamemo-lo de Nada, também uma imagem metafísica que anda de mãos dadas com sua antípoda (eis que surge Heidegger...). Mas nada de conceitos nesta ordem metafísica: tanto o Ser quanto o Não-Ser, postos como conceitos, geram o imobilismo ontológico de Parmênides, e tal perspectiva se coloca em claro confronto com o dinamismo ontológico que o Ser, o nosso diferencial $[d/dt]$, uma taxa de variação no tempo do discurso ôntico, pressupõe em seu âmago. 

FIM DA TOSQUICE 

AVANTE, “TOSCOS”!