Walter Gomide
Quantos referenciais existem? Esta pergunta (talvez, aos olhos de físicos profissionais, completamente desprovida de sentido – no entanto, para “toscos” de plantão, de suma relevância) será respondida com o auxílio da “querela Einstein-Bergson”.
Em 1922, em uma conferência dada no Collége de France a convite de Paul Langevin, Einstein foi interpelado por Henri Bergson, então a maior sumidade filosófica francesa, para explicar e discorrer sobre o tempo. Em grandes linhas, a interpelação de Bergson se deu no sentido de mostrar que não havia contradições entre o tempo durée de Bergson, o tempo contínuo e indiviso da consciência, e o tempo espacializado da teoria einsteiniana: ao contrário, as duas concepções de tempo eram auxiliares entre si e apontavam para a existência de um tempo universal, tempo este captado e intuitivamente vivido pelo senso comum sob a forma de “tempo da consciência”, um tempo que se espalharia da consciência vivente do indivíduo aos confins da “Consciência criadora” do próprio Universo físico.
Mas eis que Einstein, após ouvir “atentamente” as digressões de Bergson, responde ao filósofo francês, de forma breve e incisiva, apontando para o fato de que não há um tempo físico com as características da durée bergsoniana: o que há, fisicamente falando, é o tempo métrico dos relógios, e a duração de Bergson seria um tempo psicológico sem nenhuma relevância física, embora este tempo “da alma” seja a “matriz inspiradora” do tempo físico, principalmente no que diz respeito ao conceito de simultaneidade de eventos.
Posto isto, tentemos responder à questão de saber quantos referenciais existem usando algumas ferramentas criativas (“toscas”, melhor dizendo) que são derivadas tanto da teoria da relatividade de Einstein, geral ou restrita, quanto da concepção bergsoniana de tempo duração; a ponte que fará a ligação entre estes dois mundos heurísticos é a imagem-conceito de “Observador”.
Na relatividade, temos os referenciais, em relação ao quais as leis da física são invariantes. Chamemos um referencial de $S$ e consideremos que um referencial define uma quádrupla $<0; 0; 0; 0>$ que indica as coordenadas de origem deste referencial: a posição do espaço-tempo de onde o referencial fará suas medições. De fato, além da quádrupla $<0; 0; 0; 0>$ - daqui em diante, denominada de $<0>$ -, um referencial tem associado a si um conjunto de medições $M$. Tal conjunto pode ser visto com uma série de aparatos de medida, como relógios e réguas, que instanciam as regras e os teoremas relacionados ao conceito de medida matemática na acepção de Lebesgue. Assim, a um referencial $S$, um conceito da física em geral, mas que é proeminentemente decantado como de fundamental importância teórica na relatividade einsteiniana, associemos a dupla:
$S = < < 0 >; M >$
Passemos a Bergson e à sua Durée. A duração ou Durée é o tempo que permeia os dados da consciência: é o invólucro do campo perceptual do ser consciente, além de se expandir como o fluxo contínuo das vivências interiores; estas “distensões da alma”, as vivências interiores, são o que aparece à consciência como passado ou futuro – como diria o Santo de Hipona -, ou mesmo como o pano de fundo de qualquer ato imaginativo; engloba também a atenção, o presente percebido como realidade imediata dos dados sensíveis. Chamemos esta duração e seu campo perceptual de $P_{d}$.
Todavia, esta duração com seu campo perceptual não está abstratamente posta como uma Nuvem de Averrois solta no espaço-tempo; o elemento $P_{d}$ pertence a um corpo, uma instância que é a sede de todas as imagens ou representações que estão presentes em $P_{d}$; chamemos tal corpo de $p$. Ao par $<p; P_{d}>$, denominemos de “sujeito” ($Suj$), isto é:
$Suj = <p; P_{d}>$.
Façamos agora uma analogia entre as estruturas $Suj$ e $S$. A estrutura bergoniana $Suj$ tem um corpo de onde o sujeito se orienta e por onde acontecem as representações; o referencial $S$ de Einstein tem as coordenadas $<0>$, a posição no espaço-tempo de onde ele, o referencial $S$, estabelece o horizonte de Eventos. Consideremos também que o campo perceptual e seu envoltório contínuo e indiviso, aqui denotados de forma amalgamada por $P_{d}$, se relaciona com o campo das medidas $M$ de $S$: as medidas $M$ de $S$ são uma coleção de proposições que atribuem um valor numérico (um número real) a grandezas físicas que são operacionalizadas através de procedimentos instrumentais perceptualmente verificados e compartilhados em uma linguagem que garante a tais procedimentos a sua objetividade; o contínuo e inexprimível $P_{d}$ se converte em um campo enumerável de medições, sendo que estas são proposições de identidade entre operações que atualizam funções de medida, conceito matemático aplicado a grandezas físicas, e números reais adequada e fisicamente dimensionados.
Vale dizer também que, nas imediações de $<0>$, o referencial $S$ faz suas medições dentro de um invólucro matemático de $<0>$ que define um conjunto contínuo: a métrica de Riemann, uma estrutura diferencial cuja expressão matemática é:
$ds^{2} = g_{\mu \nu} \quad dx^{\mu} dx^{\nu}$
um somatório em relação aos índices $\mu$ e $\nu$ (trata-se de uma convenção feita por Einstein, a sua “grande realização em matemática”, segundo suas próprias palavras). No caso do espaço-tempo da relatividade restrita, o espaço de Riemann se converte no espaço de Minkowski cuja métrica é:
$ds^{2} = dx^{2} + dy^{2} + dz^{2} - c^{2}dt^{2}$,
métrica esta que define as regiões tipo-tempo, tipo-luz e tipo-espaço, pictoriamente dadas no famoso “cone de luz”, uma das mais belas imagens que Deus tem de uma das suas criações (assunto para outra “tosqueira”...).
Portanto, o termo bergsoniano $P_{d}$ encontra seu correlato em $S$ nas medições efetuadas nas imediações de sua métrica, o envoltório contínuo da posição $<0>$.
Agora, voltemos à questão de saber quantos referenciais existem. A resposta a esta questão se dá de forma muito simples, dado que qualquer ponto do espaço-tempo é um potencial “trono” de onde o referencial mede. Sabemos, da teoria cantoriana dos conjuntos, que o contínuo tem cardinalidade igual a $c = 2^{\aleph_0}$, em que $2^{\aleph_0}$ é a exponenciação com base $2$ e com potência igual à cardinalidade dos números naturais. Sendo assim, então a resposta está dada a esta pergunta periférica da relatividade de Einstein:
Existem $c = 2^{\aleph_0}$ referenciais na teoria da relatividade de Einstein!
Mas, e daí? O que isto importa? Tentemos dar relevância a esta tese sobre a cardinalidade dos referenciais einsteinianos através de uma função $Obs$ (a função “observador”) que estabelece uma conexão semântico-alegórica entre as estruturas $Suj$ e $S$. A função $Obs$, posto que função, nos diz que, para cada ponto do espaço-tempo (um autêntico referencial $S$), podemos associar um único sujeito bergsoniano, isto é:
$(\forall S) \hspace{1mm} (\exists ! \hspace{1mm} Suj) \hspace{1mm} (Obs (S) = Suj)$
Assim, a cardinalidade do conjunto-imagem da função $Obs$ é $\le c$. Entretanto, dado que os sujeitos bergsonianos são exemplificados nos sujeitos humanos – consciências “encarnadas” em corpos humanos que interagem entre si pela linguagem -, temos que a cardinalidade do conjunto composto pelas estruturas $Suj$ é um número finito $d$: devemos acreditar que a quantidade de seres humanos que existem, já existiram e ainda estão por existir, por maior que seja, é finita.
Mas associar a totalidade dos pontos do espaço-tempo, os referenciais, aos contingentes seres humanos, dispostos em historicidades confusas e metafisicamente dispensáveis enquanto imagens dos eternos e objetivos referenciais, realidades idealizadas de uma Natureza vista como engrenagem infinita, não parece ser a melhor opção. O melhor a fazer, creio eu em minha “tosquice” confessa, é admitir que a cardinalidade dos conjuntos das estruturas $Suj$ é igual a um, isto é, só há um único sujeito ao qual o contínuo dos referencias se associam por meio da função $Obs$, e este sujeito é um velho conhecido do filósofo de Königsberg. Disto vem a sugestão de um postulado “tosco” da epistemologia tratada aos moldes de uma doutrina transcendental do Conhecimento:
Todos os referencias da teoria einsteiniana estão associados a um único Sujeito, o Sujeito Transcendental kantiano, cujas formas a priori da sensibilidade são o espaço e o tempo, tempo este que é a “Durée” de Bergson.
Poderíamos dizer que o Sujeito Transcendental de Kant, munido da duração de Bergson, poderia ser substituído por Deus, ou mesmo pela Idéia de Homem. Entretanto, deixemos tais questões para uma “tosqueira” vindoura. Por enquanto, basta a tese de que todos os referenciais da relatividade são conceitos cuja imagem geratriz é a Subjetividade Transcendental. De fato, a Subjetividade Transcendental se espalha por todos os objetos que se assemelham entre si pela presença de uma vida interna orientada pela ação do tempo e espaço internos e da razão em sentido calculador ou preditivo (homens, anjos, deuses e o próprio Deus são semelhantes neste sentido), mas exclui de seu escopo de aplicabilidade aquilo que não tem tempo e espeço internos e nem uma linguagem a fim da intercomunicação – o inanimado ou inorgânico, por exemplo, estão fora do escopo de aplicação da bela imagem do Sujeito Transcendental cuja alma vibra como o Fogo de Heráclito...
AVANTE, “TOSCOS”!
Download do artigo: https://drive.google.com/open?id=0B3fec8fyRyUmWDRXbzl4NDR4eVU
Nenhum comentário:
Postar um comentário