Tosqueiras Musicais

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

"TOSQUEIRA" 5: A Teoria Geral das Sequencias e suas aplicações

Walter Gomide

A terceira parte da “Conceitografia” é uma apresentação geral das leis e conceitos concernentes à noção de “sequência”, uma ideia fundamental no processo de fundamentação lógica de qualquer teoria científica – mais precisamente, o conceito de “sequencia” é a base sobre a qual qualquer discurso pretensamente racional se fundamenta.

Mas o que é uma sequência? Para Frege, sequência é uma relação qualquer entre dois objetos. Em linguagem hodierna e usual da lógica de predicados, uma sequência é uma relação binária qualquer, traduzida para a linguagem do cálculo de predicados como “predicados diádicos”. Na abordagem fregeana, uma sequência é indefinível em termos mais simples e, portanto, é um termo primitivo da lógica. Neste sentido, a legitimidade do conceito de sequência reside na própria intuição lógica, não sendo necessário buscar elementos mais simples com os quais a noção de sequência possa ser definida; sequência é uma noção, por assim dizer e com abuso de linguagem, “axiomática” da lógica fregeana.

Desta maneira, a teoria geral das sequências (TGS) é a exposição das propriedades e leis fundamentais que governam as relações binárias em geral. Portanto, a TGS busca apresentar a estrutura lógica de qualquer teoria em que se faça uso de relações binárias nas mais diversas interpretações que estas possam ter regionalmente, isto é, dentro de contextos teóricos específicos. Assim sendo, a TGS se presta tanto como pano de fundo de uma teoria sobre a causalidade, posto que “$x$ causa $y$” é uma relação binária, como para a fundamentação lógica da aritmética, uma vez que esta se constrói a partir da relação binária de sucessão entre números – “$ n + 1$ é o sucessor de $n$”.

Este alcance quase que irrestrito da TGS é particularmente acentuado por Frege, ao nos advertir, no parágrafo que inicia a “Teoria Geral das sequências” (o parágrafo 23), que “as proposições sobre sequências desenvolvidas no que se segue ultrapassam em generalidade a todas as proposições que podem ser derivadas de qualquer noção particular de sequência”. De fato, a noção de sequência é o fundamento racional de qualquer discurso em que se tenha relações entre objetos. Qualquer correspondência entre objetos que pretende ter força heurística dentro de um quadro teórico tem suas leis e propriedades apresentadas por algum conceito ou proposição da TGS. 

Mais quais são os conceitos fundamentais da TGS que abordam a noção de sequência? O primeiro conceito fundamental que Frege apresenta é o de “propriedade hereditária em uma sequência $f”$. Basicamente, a noção de hereditariedade em uma sequência é o conceito fundamental que serve como substrato lógico que ancora a intelecção de que certas relações binárias, uma vez que indicam a “passagem de um objeto a outro”, realizam tal fluxo, tal passagem, de tal forma que algumas propriedades do objeto inicial se preservam no objeto final da relação: por assim dizer, o primeiro objeto do par ordenado da relação binária “doa” certas propriedades para o segundo objeto do par ordenado. Em símbolos lógicos modernos, a noção de hereditariedade se expressa da forma seguinte:

$Her_{f} F =_{DF} (\forall x)(Fx \rightarrow (\forall y)(f (x,y) \rightarrow Fy))$.

A noção de “hereditariedade em uma sequência $f”$ é apresentada no parágrafo 25 da “Conceitografia”. O que nos diz tal definição é o fato de que, por meio da sequência $f$, uma relação binária adequadamente escolhida, as propriedades de $x$ que são hereditárias, módulo $f$, são transmitidas a $y$. Por exemplo, consideremos a propriedade de ser uma lei da física que governa ou estrutura certa porção $x$ do espaço adequadamente escolhida – um sistema de referência. Concebamos também que esta porção $x$ se relaciona com uma outra porção $y$ do espaço por meio da sequência “$x$ é conexo a $y$” – com certa liberdade no uso da linguagem matemática, coisa de “tosco”, digamos que a conectividade entre $x$ e $y$ signifique a existência de pelo menos um caminho contínuo entre $x$ e $y$. Assim, desde que a propriedade de ser uma “lei física que vale em x” seja hereditária na sequência “$x$ é conexo a $y$”, então podemos inferir que a lei física que vale em $x$ também vale em $y$. Saber ou não se a conectividade entre referenciais é condição para a invariância das leis da física é um problema físico, não lógico. No entanto, se isto não for o caso, isto é, se a mera conectividade entre referenciais não for garantia da invariância das leis físicas, então se busca uma sequência “física” mais adequada para tanto. De fato, pela teoria da relatividade geral, a invariância das leis física é obtida quando os referenciais envolvidos se relacionam pela sequência “$y$ é uma transformação tensorial, covariante ou contravariante, de $x”$ (aqui cabe ser mais preciso quanto aos termos utilizados, mas como o espírito do “insight” é o de “tosqueira” criativa, deixemos isto para outra ocasião).

Na realidade, a TGS consiste em um “sistema de expectativa racional do que encontrar em teorias específicas”. De fato, a noção de propriedade hereditária em uma sequência $f$ é um conceito que nos orienta para pesquisas regionais ou particulares. Seria muito extravagante, por assim dizer, conceber um domínio de objetos, postos em uma teoria, de tal forma que estes não possuam propriedades hereditárias em relação a alguma relação binária. Sem propriedades hereditárias, objetos que se relacionam causalmente não poderiam ser considerados sob conceitos compartilhados, uma vez que são tais conceitos ou propriedades que são transmitidos na relação causal, um exemplo arquetípico de sequência lógica. Em uma teoria onde não há propriedades hereditárias, os objetos devem ser tratados como “nomes absolutos”, sem a possibilidade da intermediação conceitual que possa colocar os objetos sob uma mesma perspectiva conceitual.

O segundo conceito que Frege apresenta na TGS é o de ”$x$ é ancestral de $y$ na sequência $f”$ (parágrafo 26). Em símbolos, tal conceito se expressa da forma seguinte: 

$Anc_{f} (x,y) =_{DF} (\forall F)(Her_{f} F \rightarrow Fz) \rightarrow Fy)$.

O conceito acima é o fundamento lógico da noção de “precedência” entre objetos. Mais precisamente, a noção de ancestralidade em uma sequência nos dá a possibilidade de distinguir uma relação de ordem entre objetos. Suponhamos que estipulemos que haja um ponto primordial de onde o universo observável se originou. Desta forma, este ponto é o ancestral de qualquer outra situação posterior em que o universo se encontre. Tomemos o universo em seu estado atual. Então, busquemos uma sequência adequada para servir de ligação entre o ponto primordial e o estado atual do universo. Sem entrar nas dificuldades cosmológicas que tal ligação possa engendrar, consideremos bem simplificadamente que tal sequência seja “$x$ se expande até $y$”. No estado primordial do universo, deve haver propriedades relativas a este estado que sejam transmitidas pela expansão anteriormente mencionada. Reparemos que a existência de tais propriedades é uma expectativa racional, desde que falemos de uma clara situação de precedência entre as configurações do universo – neste caso, uma precedência temporal. Na situação inicial do universo, havia singularidades físicas, isto é, regiões do espaço de energias ou densidade infinitas. Por conseguinte, podemos esperar que o universo atual, “uma vez que tem por ancestral o ponto primordial”, deva conter singularidades. Reparemos que o conceito de ancestralidade em uma sequência $f$, antes de ser uma noção depreendida da experiência física ou de qualquer outro tipo, é um princípio “regulativo” da experiência; trata-se de uma lei que nos indica como a razão (ou o pensamento puro) espera que a natureza se comporte.

Mas não só na física teórica ou na cosmologia encontramos uma aplicação da noção de ancestralidade em uma sequência. Consideremos agora que estejamos lidando com a noção de proposições em uma prova ou demonstração. Seja $x$ um conjunto de axiomas que são assumidos como verdadeiros. De $x$, podemos derivar $y$ através de uma adequada regra de inferência $f$. Claramente $x$ precede $y$ na demonstração, e a regra de inferência usada para derivar $y$ pode ser vista como uma sequência que transmite certas propriedades dos axiomas para as proposições que podem ser derivadas de $x$ por meio de $f$. No caso em questão, a proposição em análise é $y$. Obviamente, espera-se que a propriedade de “ser verdadeiro”, presente em cada um dos axiomas, seja transmitida a $y$ por meio de $f$. Temos, então, de forma clara, a utilização da noção de ancestralidade em uma sequência no contexto da teoria da prova e, mais uma vez, percebe-se o caráter prescritivo da noção de precedência lógica: a razão nos oferece um conceito que nos diz como uma demonstração ou prova “deve” se comportar.

No parágrafo 29 da “Conceitografia”, Frege apresenta o conceito de “Pertinência à sequência $f$ que se inicia com $x$”. Em símbolos,

$Pert_{f} (x,z) =_{DF} \hspace{1mm} Anc_{f} (x,z) \hspace{3mm} \vee \hspace{1mm} (x = z)$.

A relação acima é o fundamento lógico da noção de estrutura ordenada: é o “índice lógico” de qualquer relação que possa ser vista como ilustrativa da idéia de “menor ou igual”, dentro de um contexto que nos dá um sentido ordinal na estruturação de um domínio: com a relação $Pert_{f} (x,z)$, pode-se falar de primeiro, segundo, terceiro, etc elementos de um domínio de objetos, sempre a partir de uma sequência $f$ que é especificada neste contexto.

Para vermos o conceito acima funcionado como “determinante de expectativas racionais”, concebamos que queiramos determinar a cardinalidade do contínuo em termos de infinitos menores. Sabemos que o contínuo c é maior que “alef zero”, isto é:

$c > \aleph_{0}$

Também sabemos, pela teoria dos conjuntos, que $c = 2^{\aleph_0}$. Desta maneira, há uma identidade demonstrada na teoria dos conjuntos que relaciona os cardinais infinitos c e À0. Mas há algum “alef” indexado que seja igual ao cardinal $c$, isto é, a cardinalidade do contínuo pode ser expresso em termos “alefianos”?

Para responder a esta pergunta, o conceito $Pert_{f} (x,z)$ pode ser útil. Claramente, uma vez que 

$c > \aleph_{0,}$

então a cardinalidade do contínuo pertence a uma série de cardinais que cresce em tamanho a partir de alef-zero, isto é:

$Pert_{f} (\aleph_{0}, c) \hspace{2mm} =_{DF} \hspace{2mm} Anc_{f} (\aleph_{0} ,c) \hspace{2mm} \vee (\aleph_{0} = c)$.

Mas sabemos que o cardinal do contínuo é maior que alef-zero, o que nos permite afirmar, a partir da noção de pertinência em uma sequência módulo $f$, que há alguma sequência que “produz ou gera” o cardinal do contínuo a partir de alef-zero. De fato, pela hipótese generalizada do contínuo, tal sequência é a exponenciação de base $2$ e expoente infinito $X$, de tal forma que:

Existe algum $X$, tal que $2^{X}  = suc (x)$,

Em que "$suc(x)$” é o sucessor imediato de $x$. Por conseguinte, a hipótese do contínuo, particularizada para $X = \aleph_{0}$, é o resultado esperado para a relação entre o contínuo e alef-zero, desde que assumamos que a estrutura dos cardinais infinitos, assim como a dos cardinais finitos, tem uma fundamentação lógica baseada na noção de pertinência em uma sequência $f$, e que a melhor sequência que expressa tal estrutura é a hipótese do contínuo generalizada. Assim, o cardinal $c$ é igual a “alef-um”. O interessante desta proposta fundacional da teoria dos cardinais infinitos é o fato de, com tal fundamento baseado na TGS, mais a hipótese generalizada do contínuo, a estrutura dos cardinais infinitos é isomórfica a dos cardinais finitos: o infinito e o finito, postos em série, são análogos. 

Não só na teoria matemática do infinito se encontram definições cujo fundamento lógico reside na noção de Pertinência em uma sequência $f$. Na Biologia, por exemplo, quando um biólogo busca encontrar o tronco comum entre todas as espécies animais, o que se pretende é uma espécie ancestral da qual todas as outras espécies se derivam. Tal espécie primeira (ou mesmo um indivíduo, singularmente dado), é o ancestral de todas as outras: há uma sequência biológica – a transmissão de material genético, por exemplo- que determina uma sucessão de espécies ou de indivíduos que pertencem à sequência biológica “$x$ transmite material genético para $y$” que se inicia com o hipotético ancestral. 

No parágrafo 31 da TGS, frege apresenta a noção de “procedimentos muitos para um”. A saber:

$Un(f) =_{DF} (\forall x)(\forall y)(fxy \rightarrow (\forall z)(fxz \rightarrow y = z)$.

A expressão acima nos dá a definição formal de uma sequência, em si mesma uma mera relação diádica, que é funcional, isto é, para dois objetos quaisquer $x$ e $y$, se $fxy$ e $fxz$, então $y$ é igual a $z$. Na ciência, em especial na física, o conceito de função é de fundamental importância. Como exemplo, podemos tomar o conceito de trajetória, uma função definida nos instantes de tempo e cujo conjunto imagem são pontos do espaço (vale lembrar que o primeiro tratamento matemático dado ao conceito de trajetória no sentido de uma função de instantes de tempo nos pontos do espaço foi dado por Nicolau de Oresme, nos séculos XIV-XV). 

Com o conceito de procedimento unívoco, Frege apresenta o substrato lógico de uma noção que, aparentemente, poderia estar ancorada em algum tipo de privilegiada intuição física ou empírica. Mas Frege tem de colocar todos os instrumentos conceituais necessários à feitura de teorias científicas dentro de noções definidas na TGS e, obviamente, a noção capital de correspondência funcional não poderia estar ausente do quadro das noções cujo fundamento é lógico. Frege “turbinou” a lógica afim de que esta se apresentasse como porto seguro de qualquer construção lógico-discursiva com pretensões racionais. Sem dúvida, um projeto para lá de ambicioso que só um “grande tosco” como Frege, um escorpiano arretado que nasceu aos oito de novembro de 1848, poderia levar adiante; e Frege pagou caro por tal projeto: um preço que poucos estão dispostos a pagar – coisa de “tosco”...

Nenhum comentário:

Postar um comentário