Tosqueiras Musicais

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

“TOSQUEIRA” 1: A Doutrina das Semelhanças e uma imagem especular da Lógica Modal.

Walter Gomide

Walter Benjamim postula que é possível falar do que é invisível por meio de coisas visíveis. Assim, posso me referir ao mistério do fluxo do tempo por meio das imagens do rio que flui ou do fogo em seu dinamismo ígneo. De alguma forma, a possibilidade de nos referirmos às coisas por meio de outras que lhe são “semelhantes” é a base do pensamento metafísico, e é justamente esta metafísica por trás da “doutrina das semelhanças” que merece ser elucidada por meio de um discurso lógico adequado.


Sem dúvida, o colapso das semelhanças ou das analogias entre dois objetos $a$ e $b$ é a identidade no sentido fregeano: afirmar que $a = b$ é dizer que os objetos $a$ e $b$ têm a mesma referência e modos de apresentação (sentidos) distintos. Mas, antes de haver esta identidade de referentes entre $a$ e $b$, há uma identidade mais fraca que se dá segundo um conceito ou propriedade. Esta identidade é a que se usa como base para o discurso conceitual, de tal forma que a cópula “é”, indicativa de tal identidade, é sinonímia da constante "$\in$" da teoria dos conjuntos. Assim, se digo que dois objetos são semelhantes ($a \approx b$) quero afirmar com isto que há pelo menos um conceito $C$ tal que $Ca$ e $Cb$: tanto $a$ quanto $b$ participam do conceito $C$, isto é, $a \in C$ e $b \in C$. Para que tal semelhança se transforme em identidade, então haveria a necessidade de que, para todo conceito $X$, tivéssemos o seguinte:


$Xa \leftrightarrow Xb$.

Temos assim a famosa lei de Leibniz para a identidade entre objetos:

$(\forall X) (\forall x) (\forall y) (x = y \leftrightarrow (Xx \leftrightarrow Xy))$

A definição de semelhanças entre objetos seria dada da forma seguinte:

$(\forall x) (\forall y) (x \approx y \leftrightarrow (\exists X) (Xx \leftrightarrow Xy)$

Assim, em lógica de segunda ordem, temos de forma clara critérios tanto para a identidade quanto para a semelhança entre objetos.

Mas até que ponto esta semelhança lógica em segunda ordem capta o sentido propriamente metafísico da doutrina das semelhanças de Walter Benjamin? O texto de Benjamin sugere que, antes que eu possa afirmar proposições que afirmem a semelhança de $a$ e $b$ em nível lógico ou conceitual, devemos admitir a semelhança entre $a$ e $b$ no nível imagético ou representacional. De fato, qual o conceito objetivo comum à chama que continuamente vibra e à estrutura do tempo? Ou ainda: o que há de comum, sob o ponto de vista conceitual ou objetivo, entre o infinito e o céu estrelado de Kant? Provavelmente, a resposta a estas duas questões seria um rotundo “nada”! Mas não há dúvida de que as semelhanças que verificamos nestes casos se dão entre as “imagens ou representações” que temos destas realidades tão distantes entre si sob o ponto de vista lógico ou conceitual.

Surge assim a possibilidade de tratarmos a semelhança não através de conceitos, mas sim por meio de representações ou imagens (doravante, imagens ou representações serão designadas por $R$). Uma imagem ou uma representação é um arquétipo imagético, algo como o início de um dado conceito – neste sentido, as representações $R$ são a “velha metáfora” cujo resíduo, segundo Nietzsche, daria origem a um conceito CR

A fim de dar um tratamento lógico às doutrinas das semelhanças, iniciemos com a lógica modal $K$, em que uma interpretação é dada por

$I = <W, R, v>$,

onde $W$ é um conjunto de mundos possíveis, $R$ é a relação de acessibilidade tal que $R \subseteq W \times W$, e $v$ é uma função de valoração. A partir de $I$, estipulemos uma interpretação $U$, definida em uma lógica $K'$ que é uma "imagem especular de $K''$, tal que:


$U = <\sum, \approx, h>$


$\sum$ é um conjunto de objetos quaisquer, $\approx$ é a relação de semelhança entre eles, e $h$ é uma função de aplicabilidade das imagens $R$ a objetos ($h$ é estritamente análoga a $v$, sendo que $h_{a} (R) = 1$ significa que a imagem $R$ é aplicável a $a$, e $h_{a} (R) = 0$ significa que a imagem $R$ é não-aplicável a $a$).

Definamos agora, em estrita analogia com as definições de “necessariamente $A$ é verdadeiro” ($\Box A$) e “possivelmente $A$ é verdadeiro” ($\Diamond A$),  as noções de “imagem $R$ é fortemente aplicável a um objeto $\alpha$” e “imagem $R$ é fracamente aplicável a um objeto $\alpha$”. Temos então:

$R$ é uma imagem fortemente aplicável a $\alpha$ (em símbolos: $\ll _{\alpha} \uparrow R$, em que " $\ll _{\alpha}$ " significa aplicável ao objeto $\alpha$, e “$\uparrow$” significa fortemente) se, e somente se:

1) Para todo objeto $\beta$, tal que $\alpha \approx \beta$, é o caso de $\ll _{\beta} R$ ("$\ll _{\beta} R$" significa que $R$ é aplicável a $\beta$).

Por sua vez, a imagem $R$ é fracamente aplicável a um objeto $\alpha$ ($\ll_{\alpha} \downarrow R$) se, e somente se:

2) Existe um objeto $\beta$, tal que $\alpha \approx \beta$, é o caso de $\ll_{\beta} R$.

Dado um domínio $\sum$ de objetos, escolhamos dentre eles o objeto $\alpha$. Verificamos que a imagem $R$, uma vez sendo fortemente aplicável a $\alpha$, pode relacionada a todo objeto $\beta$ que é semelhante a $\alpha$. Assim sendo, a imagem $R$ corre por todos os objetos que são “familiares a $\alpha$” sem excluir nenhum deles: a imagem $R$ não determina uma região de exclusão; ela não determina ou indica o uso lógico da “negação”, posto que $R$ se aplica a todos os objetos que se assemelham a $\alpha$.

Por sua vez, quando $R$ é fracamente aplicável a $\alpha$, $R$ se aplica a alguns objetos semelhantes a $\alpha$, mas não necessariamente a todos. Se enfatizarmos que da possibilidade não chegamos à necessidade, isto é, se impusermos a cláusula de que $R$ é fracamente aplicável a um dado objeto e simultaneamente não é fortemente aplicável a este mesmo objeto, então $R$ define uma região de exclusão, e assim configura um conceito em sentido lógico, posto que $R$ se permite negar: há coisas às quais $R$ não se aplica - existem os não-$R$´s.

Destas observações, podemos postular um critério pelo qual uma imagem $R$ engendra um conceito (em símbolos, $R ⋑ C$, em que “$R ⋑ C$” nos diz que $R$ engendra o conceito $C$). Tal critério é o seguinte:

$(R ⋑ C) \leftrightarrow (\exists \alpha_{\in \sum}) (\ll_{\alpha} \downarrow R \wedge \neg (\ll_{\alpha} \uparrow R))$.

Uma imagem é alçada à categoria de conceito quando ela é delimitada sob o ponto de vista de sua aplicação: ela não pode ser predicada de todos, mas apenas de alguns. Na qualidade de um conceito, uma imagem tem de ser negada em relação a pelo menos um objeto: devem existir os que não são $R$, pois isto é o prenúncio de que o conceito $C$ que $R$ engendra estará subordinado aos princípios de não-contradição e o do terceiro excluído – a questão das lógicas não-clássicas e suas imagens geratrizes é tema para outra “tosqueira”...

Falemos agora um pouco sobre o pano de fundo das idéias desenvolvidas nesta primeira “tosqueira’: a noção de semelhança conforme Walter Benjamin a considera. Afinal de contas, quando dois objetos são semelhantes módulo Benjamin?

Sob o ponto de vista lógico, como visto anteriormente, dois objetos são semelhantes se há pelos menos um conceito comum por eles compartilhados. Neste sentido, conforme a lógica “especular” encarnada na tripla $U = <\sum, \approx, h>$, a semelhança lógica entre objetos ocorre se as imagens geratrizes dos conceitos compartilhados por tais objetos são representações fracamente aplicáveis a tais objetos. Isto quer dizer, em outras palavras, que há objetos semelhantes aos objetos iniciais da análise aos quais a imagem geratriz dos conceitos não se aplica; e se a imagem não se aplica, os próprios conceitos que garantem a semelhança não se aplicam, o que acarreta a antinomia que afirma que dois objetos são semelhantes se, e somente se, não forem semelhantes.

Entretanto, tal antinomia é facilmente evitada, na teoria das semelhanças de Benjamin, se estivermos atentos ao fato de que a semelhança da qual Benjamin fala não é conceitual, mas de natureza metafísica ou essencialmente imagética: o que garante a semelhança universal entre os objetos é a existência de uma imagem comum aplicável a todos os objetos.

Analisando tais fatos dentro da lógica especular $K´$, as coisas se dariam assim: primeiramente, estipulemos a semelhança universal entre os objetos através do postulado de que, para quaisquer objetos $x$ e $y$, $x$ é semelhante a $y$ ($x \approx y$). Dito de outra maneira, o postulado da semelhança universal afirma a existência de uma imagem que se aplica fortemente a todos os objetos, isto é: 

$(\forall x) (\forall y) (\exists Z) (\ll_{x}   \uparrow Z   \wedge   \ll_{y}   \uparrow Z)$

Chamemos a imagem $Z$ de $[d/dt]$ (uma alusão óbvia ao cálculo diferencial e ao dinamismo ontológico de Heidegger expresso à la Deleuze). Com tal imagem, temos um critério para a semelhança entre objetos, a saber:

$(x \approx y) \leftrightarrow [d/dt] (x) \wedge [d/dt] (y)$.

Portanto, é lógico que, para todo $x$, temos que: 

$\ll_{x} \uparrow [d/dt]$

Mas o que é a imagem $[d/dt]$? A resposta é simples: é a imagem do Ser, a imagem ontológica mais fundamental que aglutina todos os entes (objetos) sob a ótica da semelhança. E tal imagem não gera conceito, mas é intrinsicamente um amálgama imagético que se aplica há tudo que há e que garante a similaridade de todas as coisas; é um princípio de unidade do real e, como tal, é metafísico – a imagem metafísica por excelência. 

E quanto ao oposto do Ser? Chamemo-lo de Nada, também uma imagem metafísica que anda de mãos dadas com sua antípoda (eis que surge Heidegger...). Mas nada de conceitos nesta ordem metafísica: tanto o Ser quanto o Não-Ser, postos como conceitos, geram o imobilismo ontológico de Parmênides, e tal perspectiva se coloca em claro confronto com o dinamismo ontológico que o Ser, o nosso diferencial $[d/dt]$, uma taxa de variação no tempo do discurso ôntico, pressupõe em seu âmago. 

FIM DA TOSQUICE 

AVANTE, “TOSCOS”!

Um comentário :

  1. Toscos unidos, sou fã de vocês, parabéns mesmo pela iniciativa e vamos juntos!

    "Não somos batráquios pensantes de entranhas congeladas, temos que constantemente parir nossos pensamentos em meio à nossa dor..." Nietzsche

    Grande abraço e contem com este tosco aqui também!

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