Tosqueiras Musicais

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

"TOSQUEIRA" 7: A arte como uma possibilidade original de desvelamento do Ser

Luciano Martins

O pensamento heideggeriano continua muito vivo, instigando nossas reflexões para além do habitual. Em meio a seus textos, fomos arremessados a pensar sobre a condição do homem em meio técnica na contemporaneidade. Mas, antes de enveredarmos por esse caminho, se faz necessário situar o leitor por entre esse panorama árido que é a filosofia heideggeriana. Refletiremos sobre um texto intitulado “A Questão da Técnica”. Nessa obra, o filósofo nos provoca o pensamento para pensarmos de uma outra maneira, por um viés que não fosse mais pautado pela técnica; busca com isso avivar o pensamento novamente através de um modo não convencional, não padronizado. Mas que maneira seria essa? Ao longo do texto iremos esclarecer isso.

Para o pensador, a técnica não está relacionada como meio para chegar a um fim determinado, e sim com a verdade revelada do ser, o que norteará o homem a pensar sobre o seu estar no mundo. Então, ao refletirmos sobre a tecnicidade tendo como escopo uma linguagem marcada pelo rigor de uma racionalidade escalonada, dentro de um escopo matemático que aprisiona sentidos e determina funções, surge a arte como possibilidade para fugirmos desse tecnicismo, reinventarmos outra maneira de ser no mundo.

Para Heidegger, se distanciarmos do pensamento técnico, matemático, que tem por característica esquadrinhar, delimitar a reflexão, teremos um pensamento mais livre e criativo frente aos objetos, pois não serão mais reduzidos a explicações absolutas e, consequentemente, utilizaremos outras possibilidades de desvelamento do ser. Pois, para o pensamento heideggeriano, o homem precisa buscar uma forma mais meditativa e menos racional de significar o mundo, e quando se faz isso, volta-se para o ser através de uma maneira mais criativa e livre, tais como a poesia e a arte. Para o filósofo, a forma calculadora em que está inscrito o pensar humano aprisiona, cerceia o ser. Sendo assim, fecham-se outras possibilidades do ser revelar-se ao homem. Então, a poesia e a arte, de uma maneira geral, nos contemplam com outras possibilidade de compreensão do ser, fugindo da lógica racional.

Segundo Heidegger, a arte, tais como a escultura, a poesia e a pintura, nos leva a outras paragens, a sensações não sentidas; direciona-nos e nos lança ao desconhecido, a um mundo estranho. E qual a importância disso? É através desse processo de estranhamento que a arte contribui desvelando parte do ser; é nesse espaço de abertura, onde os objetos mostram o que são de fato, que novos sentidos aparecem, e a arte é esse espaço de abertura do ser: ela tem a possibilidade de desvelar parte do ser. Mas, para isso acontecer, é necessário um afastamento das significações que foram indexadas dentro de uma lógica da serventia, de uma funcionalidade que não mostra o que é um ente em toda a sua possibilidade significativa.

A originalidade da arte está no desvelamento do ser, isto é, a partir da arte, os entes são “abertos” em suas significações mais profundas, não sendo mais utensílios presos a uma funcionalidade; eles saem desse ciclo, dessa lógica onde nós os enquadramos e estipulamos a sua função no mundo. No romper dessa fronteira da utilidade e da serventia, os objetos mostram o que são de fato, e a partir daí, esse caráter de marcar e conhecer uma coisa pelo emprego que se faz dela perde sentido, pois agora ela mostra o que é, não pela sua empregabilidade no mundo, mas sob outras formas; não mais como ente, e sim como ser. Assim, esse espaço de abertura é a arte que faz surgir novas possibilidades, não fixando suas identidades, não demarcando uma função, uma serventia; e assim , o ser é desvelado. 

Mas o ser não é desvelado totalmente, e sim parte dele, ou seja, conheceremos apenas parte do ser que se mostra nos entes. A arte tem esse poder de descontextualizar um objeto, mostrando-o sobre novas perspectivas, sob um novo viés, que até então estava impensado e invisível nos entes. O artista faz o ser aparecer, ele desvela o ser dos entes, isto é, o que está invisível nos entes aparece em uma obra de arte, tais como a pintura, poesia, música, escultura, dentre outras.

Os modos de ser dos objetos se fazem no mundo cotidiano, e é aí que aparecem suas funcionalidades e a sua serventia na lida diária da vida humana. Já a arte tem por característica de desvelar o que está velado, de descortinar o ser. A arte faz com que o pensamento saia do comodismo habitual que limita o entendimento a demarcar os objetos; ela retira o véu que encobre o ser, trazendo-o à presença. “Pois bem, na obra não se trata da reprodução de cada [ente] singular existente. Muito pelo contrário, trata-se da reprodução da essência geral das coisas”. Na cotidianidade, os objetos, as coisas, não mostram sua originalidade, a sua essência, pois estão presos aos afazeres prosaicos. Sob tal perspectiva, o que estamos dizendo é que esses instrumentos destinados a funções específicas de utilidade encobrem o que verdadeiramente estes objetos são: não perdendo sua essência, ela – a essência - apenas fica escondida sob o véu da instrumentalização, e a arte leva à frente essa abertura do ser. 

Não estamos defendendo que o ser, através da arte, pode ser objetivado inteiramente; ela apenas descobre um pouco o véu que está colocado sobre o ser e mostra parte dele no ente. Mas a arte, como espaço de abertura do ser, também pode ser esquadrinhada, medida e ordenada. A partir dessa ideia de ordenação lógica, tudo que não segue essa estrutura racional e ordenada fica sem sentido, pois tendemos para as coisas ordenadas, para uma explicação racional. E aí buscamos na ciência a representação de um mundo com mais objetividade, com um pensar guiado por uma reflexão através do cálculo, e isso, para Heidegger, nos leva ao esquecimento do ser e do pensar meditativo. 

Temos como pano de fundo, ao refletir sobre a técnica, a existência angustiante do homem contemporâneo, percebido através de uma vida estruturada pela utilidade dos objetos. Percebe-se isso como se fosse uma grande cadeia de objetos ligados uns aos outros pela utilidade e, no final de tudo, não há um sentido, pois afastamos ainda mais do ser, e ele se esconde no seu desvelar, o que leva ao homem à angustia, pois percebe a falta de sentido da sua existência. Para Heidegger, “a angústia revela o ser para poder ser mais próprio, ou seja, o ser livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo”. Essa citação mostra que, através da angústia, o ser-aí abre uma possibilidade de escolher a sua própria existência, através de um poder ser autêntico, original, não mais preso à determinação de uma cultura ou de uma tradição.

A angústia é fundamental, pois é por ela que o Dasein toma consciência de si mesmo, de que está lançado no mundo, deslocado, sem segurança, frente à tarefa de tornar-se de um modo mais próprio, através de uma construção mais original. Então, o homem se sente angustiado frente as insignificâncias de um mundo em que ele encontra só um imenso vazio, pois nas redes referencias de objetos, os elos de serventia dos instrumentos se tornam insignificantes; ele, o Dasein, depara-se com um vazio existencial, tomando consciência que a vida rotineira e habitual que leva, padronizada dentro de conceitos moldados e dentro de uma prática e do uso, são fracas e vazias, mostrando a vulnerabilidade de uma existência sem sentido. A angustia dá ao Dasein liberdade, pois ela retira as trivialidades do cotidiano em que o ser-aí está imerso; e para preencher esse vazio do ser, o homem busca compensar essa falta entretendo-se com os entes: toda ordem de dispersão da angústia surge aqui sob a forma de consumismo e de hedonismos de toda espécie.

Na cotidianidade dos afazeres, podemos nos compreender, mas também perder esse elo de compreensão de nós mesmos. Segundo Fogel:

“(...) O fato de ser o Dasein único ente que é sempre um por fazer, sempre a necessidade de ser uma tarefa de auto- realização, pelo fato de jamais ser dado ou aparecer pronto, feito e acabado. O homem é sempre a necessidade de lançar-se numa ocupação, num que fazer, para completar o oco, que é sua vida; para encher o buraco que é a sua existência (...)”

Pelo Dasein, estar no mundo é relacionar-se com ele de maneira constante - esse ser-aí tem uma disposição a imaginar e querer compreender o ser dos entes, inclusive o seu próprio a partir do mundo em que vive, ou seja, de acordo com a sua vida fática. Além do mais, tudo que admite alguma predicação já passa a ser ente, ou seja, o ser é inominável.

Download do artigo: https://drive.google.com/open?id=0B3fec8fyRyUmWEtTUDRKN0pZZ3c

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