Tosqueiras Musicais

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

"TOSQUEIRA" 3: A Matemática do Infinito e a Teologia Cristã – uma aproximação.

Walter Gomide.

Em várias estruturas algébricas da matemática, temos as figuras dos elementos neutro e simétrico. Tomando a adição como exemplo, a relação entre estes elementos se dá na afirmação geral de que, dado um elemento x de um domínio de objetos, existe o simétrico $(-x)$ tal que:

$x + (-x) = 0$,

sendo $0$ o elemento neutro.

Visto pictoriamente, o simétrico de um elemento $x$ é o caminho que devemos percorrer para voltarmos à origem $0$, após um deslocamento igual a $x$. Sendo assim, o simétrico restitui o que é devido e, com esta restituição, voltamos ao ponto $0$ de uma dada situação algébrica; este ponto $0$, por sua vez, indica um estado originário ou um acréscimo que em nada altera uma configuração determinada: o elemento neutro representa, por assim dizer, a resultante de forças que mantém uma configuração na sua mesmidade originária (criação imagético-conceitual bem “tosca”, mas, creio eu, com valor heurístico).

Portanto, para os domínios de objetos que se assemelham entre si por força de serem, em algum grau, ilustrados por esta imagem geométrica de deslocamentos com seus termos reversíveis, tais como as forças da física clássica ou a aritmética dos números reais, a presença dos elementos simétricos e nulo é quase que imediatamente verificada: onde houver vetores orientados de alguma maneira haverá simetria e o consequente elemento neutro; onde houver a imagem dos eixos definidores de imagens especulares haverá elementos simétricos ou neutros.

Mas como se comportariam tais espelhos com seus elementos reversos se houvesse objetos refletidos de tamanho infinito? Em outras palavras, o que esperar da expressão

$x + (-x) = x – x$,

quando $x$ for infinito?

Podemos responder a tal questão de duas maneiras distintas. Em primeiro lugar, é possível admitir, como é feito na álgebra dos números surreais ou dos números hiper-reais, que a infinitude dos objetos envolvidos em nada altera o espelho fundamental que determina a simetria e o elemento neutro e, assim, teríamos que para os números infinitos $\infty$ (aqui o símbolo “$\infty$” é usado como uma variável cujo campo de atuação é qualquer número infinito; em geral, tais números são os transfinitos de Cantor, tomados em sentido ordinal, que são vertidos para a aritmética dos surreais ou dos hiper-reais), vale o seguinte:

$\infty - \infty = 0$

Desta forma, as presenças do simétrico e do elemento neutro são garantidas para os números infinitos, vistos aqui como vetores cujos módulos ultrapassam qualquer módulo de vetores finitos.

Entretanto, podemos admitir, assim como fez Cantor na sua teoria original sobre os cardinais transfinitos, que o espelho aritmético falha ao refletir as imagens de números infinitos e, portanto, temos que:

$\infty - \infty \neq 0$.

Mais especificamente, sendo $\infty$ um número cardinal transfinito, o resultado de $\infty - \infty$, na aritmética cantoriana dos números cardinais transfinitos, em geral é indeterminado: a subtração na aritmética de Cantor é uma operação que não é totalmente definida; ela é falha na presença de argumentos transfinitos.

Conclui-se disto que o espelho no mundo dos transfinitos de Cantor esfumaça a simetria e o consequente elemento neutro: no infinito, a bela imagem de vetores de sentidos opostos e de mesmo módulo e direção se anulando e voltando a uma origem fundante, uma espécie de tensão dialética reparadora, não cabe; os vetores infinitos não se anulam e, ao contrário, geram nuvens de indeterminação que não tem nome no vocabulário aritmético transfinito.

Entretanto, existe a possibilidade de nomearmos inequivocamente tal nuvem, e esta possibilidade encontramos na aritmética dos números transreais, domínio numérico que foi criado por James Anderson, cientista inglês da computação, por volta de 1995 (cabe aqui ressaltar que eu tenho a honrar de ser um dos divulgadores dos transreais no Brasil, além de ser, juntamente com Tiago Reis e o próprio James Anderson, um dos criadores da semântica total e do hiperespaço proposicional baseado nos transreais). Nos números transreais, introduzimos três constantes fundamentais, a saber:

a) $1/0 = \infty$;

b) $-1/0 = - \infty$;

c) $0/0 = \Phi (Nullity)$.

Os números $1/0$ e $-1/0$, respectivamente, são vetores de sentidos contrários, mesma direção e de tamanho absolutamente infinitos: são infinitos maiores do que qualquer transfinito cantoriano e, neste sentido, se uma vez fossem traduzidos à teoria dos conjuntos, seriam representativos de quantidades infinitas que não podem ser superadas por nenhum outro infinito passível de ser apresentado com um transfinito (talvez fosse o caso de ver tais infinitos, $1/0$ e $-1/0$, como classe próprias no sentido de Von Neumann). Por seu turno, o $0/0$ é um número indicativo da superposição de todos os números reais – ele é o resultado da expressão $0 = 0x$, o que equivale dizer que ele aponta para todos os reais ao mesmo tempo: trata-se de um número equívoco, um objeto novo na ontologia da matemática, posto que pode ser visto como o amálgama de todos os reais, o número que condensa em si todos o domínio dos números reais: um apéiron matemático que não pode ser comparado com nenhum outro número e que, através de qualquer operação matemática definida, comporta-se como um elemento que absorve qualquer número: nullity mais qualquer coisa é nullity, nullity vezes qualquer coisa é nullity, nullity dividido por qualquer coisa é nullity, e assim por diante. Cabe dizer também que nullity se situa na n-ésima coordenada de um espaço projetivo em cujas $(n-1)$ -ésimas coordenadas está o restante dos transreais: nullity vê a totalidade dos transreais de fora, desconexo das relações de continuidade e de ordem presentes com os outros números; nullity, neste sentido, é um número aristocrático, nietzschiano, de onde se apercebem as outras entidades numéricas de forma sub specie aeternitatis. 

Além do mais, cabe dizer aqui que o espelho de Cantor, incapaz de gerar um nome para a indeterminação causada quando se colocam dois infinitos tensionados dialeticamente, dentro da aritmética transreal, consegue estabelecer um nome, um único objeto, para esta suposta indeterminação resultante da subtração de infinitos. Isto é, na aritmética transreal, vale a seguinte identidade:

$\infty - \infty = \Phi$.

E é justamente a partir desta identidade que a especulação alegórica entre Matemática e Teologia terá início. 

Partamos da narrativa cristã segundo a qual o Homem, inicialmente postado no paraíso em simbiose com Deus, foi retirado desta situação pelo pecado original, um pecado que representa uma falta ou um débito infinito em relação à sua condição inicial de Senhor ou Pastor do Paraíso – Adão, em síntese. Desta forma, consideremos que o Homem estava em $0$ e pelo pecado original foi lançado a $\infty$. Chamemos o deslocamento pecado original de $Or$. Temos então tal situação assim ilustrada em uma álgebra trans-vetorial:

$0 \hspace{2mm} \rightarrow_{Or} \hspace{2mm} - \infty$

Dado isto, como pode o Homem pagar sua dívida infinita e voltar ao Paraíso, ao estado $0$ de sua condição primeira? Se admitirmos que a aritmética dos infinitos é uma imagem alegórica da Teologia de matriz judaico-cristã, então a única maneira de ocorrer a volta ao estado de inteireza inicial é através do deslocamento simétrico $\infty$: o Homem salda o débito infinito e volta ao paraíso, e para pagar tal dívida é necessário que Deus –Pai, na figura do Ser infinito $\infty$, se ofereça como sacrifício; dai em diante, as aritméticas surreais e hiper-reais nos mostram a lógica da expiação:

$- \infty \hspace{1mm} \rightarrow_{\infty} \hspace{1mm} 0$

A expressão acima nada mais do que uma outra maneira de dizer que:

$\infty - \infty = 0$

Mas tentemos enfatizar o papel de Deus-Filho nesta lógica expiatória. Admitamos que Deus-Pai se oferece em sacrifício, mas que agora a alegoria matemática adequada para ilustrar tal processo é dada pela aritmética transreal. Neste caso, temos que:

$- \infty \hspace{2mm} \rightarrow_{\infty} \hspace{2mm} \Phi = 0/0$

A expressão acima (um outro modo de apresentar a identidade $\infty - \infty = \Phi$ nos diz que o sacrifício de Deus-Pai é igual a nullity. Como nullity pode ser visto como a superposição de todos os números reais, por analogia tomemos que nullity, nesta alegoria teológica (“toscamente” construída, diga-se de passagem), representa a superposição ou o almágama de todos os débitos individuais que foram pagos de uma só vez por Deus-Pai. Mas Deus-pai é o infinito $\infty$, e não hesito em chamar de Deus-Filho à figura matemática de nullity. Por conseguinte, o sacrifício de Deus-Pai não nos leva imediatamente ao Paraíso, à nossa inteireza inicial, mas sim ao Deus-Filho; é Ele que restitui a condição adâmica perdida; é Ele que nos leva ao estado $0$. 

Mas como Deus-Filho no leva de volta ao Paraíso? Resposta: pelo amor que Dele “procede”, uma função A que será “toscamente” chamada de “Espírito Santo”. Assim, temos:

$\Phi = 0/0 \hspace{2mm} \rightarrow_{A} \hspace{1mm} 0$

Aparece, então, a Cadência Tonal da Soteriologia Cristã, a saber:

$0 \rightarrow - \infty \rightarrow \infty \rightarrow \Phi \rightarrow_{A} 0$

Começamos no Paraíso ($0$) e de lá nos afastamos infinitamente ($- \infty$). Depois, Deus-Pai se oferece em Sacrifício para saldar nossas dívidas, e estas são pagas no sacrifício de Deus-Filho (F); Este, por sua vez, pela ação do Espírito Santo, nos leva de volta ao Paraíso (0). E o pressuposto fundamental desta triangulação que nos leva de volta ao Paraíso é a Santíssima Trindade:

$<\infty, \Phi, A>$,

A qual eu tomo como sendo definida por:

$<\infty, \Phi, A> \equiv_{df} \hspace{2mm} <\infty = \Phi>$,

o que nos dá a seguinte equivalência entre as lógicas expiatórias de natureza surreal e transreal:

$0 \rightarrow - \infty \rightarrow \infty \rightarrow \Phi \rightarrow <\infty = \Phi> 0 \equiv 0 \rightarrow - \infty \rightarrow \infty \rightarrow 0$

Mas deixemos tais Cadências, muito esquemáticas e quase que criptográficas, para uma outra tosqueira. Por enquanto, é suficiente ter em mente que a Matemática dos Infinitos, sejam estes surreais ou transreais, são alegorias da Soteriologia Cristã. Levemos em conta também que Nullity, este número não-finito que se comporta como nome equívoco, pode ser associado, segunda a minha “tosquice” permite ver, à figura do Cristo.

Avante, “Toscos”!

terça-feira, 18 de outubro de 2016

"TOSQUEIRA" 2: Einstein, Bergson e a Cardinalidade dos Referenciais.

Walter Gomide

Quantos referenciais existem? Esta pergunta (talvez, aos olhos de físicos profissionais, completamente desprovida de sentido – no entanto, para “toscos” de plantão, de suma relevância) será respondida com o auxílio da “querela Einstein-Bergson”.

Em 1922, em uma conferência dada no Collége de France a convite de Paul Langevin, Einstein foi interpelado por Henri Bergson, então a maior sumidade filosófica francesa, para explicar e discorrer sobre o tempo. Em grandes linhas, a interpelação de Bergson se deu no sentido de mostrar que não havia contradições entre o tempo durée de Bergson, o tempo contínuo e indiviso da consciência, e o tempo espacializado da teoria einsteiniana: ao contrário, as duas concepções de tempo eram auxiliares entre si e apontavam para a existência de um tempo universal, tempo este captado e intuitivamente vivido pelo senso comum sob a forma de “tempo da consciência”, um tempo que se espalharia da consciência vivente do indivíduo aos confins da “Consciência criadora” do próprio Universo físico.

Mas eis que Einstein, após ouvir “atentamente” as digressões de Bergson, responde ao filósofo francês, de forma breve e incisiva, apontando para o fato de que não há um tempo físico com as características da durée bergsoniana: o que há, fisicamente falando, é o tempo métrico dos relógios, e a duração de Bergson seria um tempo psicológico sem nenhuma relevância física, embora este tempo “da alma” seja a “matriz inspiradora” do tempo físico, principalmente no que diz respeito ao conceito de simultaneidade de eventos.

Posto isto, tentemos responder à questão de saber quantos referenciais existem usando algumas ferramentas criativas (“toscas”, melhor dizendo) que são derivadas tanto da teoria da relatividade de Einstein, geral ou restrita, quanto da concepção bergsoniana de tempo duração; a ponte que fará a ligação entre estes dois mundos heurísticos é a imagem-conceito de “Observador”.

Na relatividade, temos os referenciais, em relação ao quais as leis da física são invariantes. Chamemos um referencial de $S$ e consideremos que um referencial define uma quádrupla $<0; 0; 0; 0>$ que indica as coordenadas de origem deste referencial: a posição do espaço-tempo de onde o referencial fará suas medições. De fato, além da quádrupla $<0; 0; 0; 0>$ - daqui em diante, denominada de $<0>$ -, um referencial tem associado a si um conjunto de medições $M$. Tal conjunto pode ser visto com uma série de aparatos de medida, como relógios e réguas, que instanciam as regras e os teoremas relacionados ao conceito de medida matemática na acepção de Lebesgue. Assim, a um referencial $S$, um conceito da física em geral, mas que é proeminentemente decantado como de fundamental importância teórica na relatividade einsteiniana, associemos a dupla:

$S = < < 0 >; M >$

Passemos a Bergson e à sua Durée. A duração ou Durée é o tempo que permeia os dados da consciência: é o invólucro do campo perceptual do ser consciente, além de se expandir como o fluxo contínuo das vivências interiores; estas “distensões da alma”, as vivências interiores, são o que aparece à consciência como passado ou futuro – como diria o Santo de Hipona -, ou mesmo como o pano de fundo de qualquer ato imaginativo; engloba também a atenção, o presente percebido como realidade imediata dos dados sensíveis. Chamemos esta duração e seu campo perceptual de $P_{d}$.

Todavia, esta duração com seu campo perceptual não está abstratamente posta como uma Nuvem de Averrois solta no espaço-tempo; o elemento $P_{d}$ pertence a um corpo, uma instância que é a sede de todas as imagens ou representações que estão presentes em $P_{d}$; chamemos tal corpo de $p$. Ao par $<p; P_{d}>$, denominemos de “sujeito” ($Suj$), isto é:

$Suj = <p; P_{d}>$.

Façamos agora uma analogia entre as estruturas $Suj$ e $S$. A estrutura bergoniana $Suj$ tem um corpo de onde o sujeito se orienta e por onde acontecem as representações; o referencial $S$ de Einstein tem as coordenadas $<0>$, a posição no espaço-tempo de onde ele, o referencial $S$, estabelece o horizonte de Eventos. Consideremos também que o campo perceptual e seu envoltório contínuo e indiviso, aqui denotados de forma amalgamada por $P_{d}$, se relaciona com o campo das medidas $M$ de $S$: as medidas $M$ de $S$ são uma coleção de proposições que atribuem um valor numérico (um número real) a grandezas físicas que são operacionalizadas através de procedimentos instrumentais perceptualmente verificados e compartilhados em uma linguagem que garante a tais procedimentos a sua objetividade; o contínuo e inexprimível $P_{d}$ se converte em um campo enumerável de medições, sendo que estas são proposições de identidade entre operações que atualizam funções de medida, conceito matemático aplicado a grandezas físicas, e números reais adequada e fisicamente dimensionados.

Vale dizer também que, nas imediações de $<0>$, o referencial $S$ faz suas medições dentro de um invólucro matemático de $<0>$ que define um conjunto contínuo: a métrica de Riemann, uma estrutura diferencial cuja expressão matemática é:

$ds^{2} = g_{\mu \nu} \quad dx^{\mu} dx^{\nu}$

um somatório em relação aos índices $\mu$ e $\nu$ (trata-se de uma convenção feita por Einstein, a sua “grande realização em matemática”, segundo suas próprias palavras). No caso do espaço-tempo da relatividade restrita, o espaço de Riemann se converte no espaço de Minkowski cuja métrica é:

$ds^{2} = dx^{2} + dy^{2} + dz^{2} - c^{2}dt^{2}$,

métrica esta que define as regiões tipo-tempo, tipo-luz e tipo-espaço, pictoriamente dadas no famoso “cone de luz”, uma das mais belas imagens que Deus tem de uma das suas criações (assunto para outra “tosqueira”...).

Portanto, o termo bergsoniano $P_{d}$ encontra seu correlato em $S$ nas medições efetuadas nas imediações de sua métrica, o envoltório contínuo da posição $<0>$.

Agora, voltemos à questão de saber quantos referenciais existem. A resposta a esta questão se dá de forma muito simples, dado que qualquer ponto do espaço-tempo é um potencial “trono” de onde o referencial mede. Sabemos, da teoria cantoriana dos conjuntos, que o contínuo tem cardinalidade igual a $c = 2^{\aleph_0}$, em que $2^{\aleph_0}$ é a exponenciação com base $2$ e com potência igual à cardinalidade dos números naturais. Sendo assim, então a resposta está dada a esta pergunta periférica da relatividade de Einstein:

Existem $c = 2^{\aleph_0}$ referenciais na teoria da relatividade de Einstein!

Mas, e daí? O que isto importa? Tentemos dar relevância a esta tese sobre a cardinalidade dos referenciais einsteinianos através de uma função $Obs$ (a função “observador”) que estabelece uma conexão semântico-alegórica entre as estruturas $Suj$ e $S$. A função $Obs$, posto que função, nos diz que, para cada ponto do espaço-tempo (um autêntico referencial $S$), podemos associar um único sujeito bergsoniano, isto é:

$(\forall S) \hspace{1mm} (\exists ! \hspace{1mm} Suj) \hspace{1mm} (Obs (S) = Suj)$

Assim, a cardinalidade do conjunto-imagem da função $Obs$ é $\le c$. Entretanto, dado que os sujeitos bergsonianos são exemplificados nos sujeitos humanos – consciências “encarnadas” em corpos humanos que interagem entre si pela linguagem -, temos que a cardinalidade do conjunto composto pelas estruturas $Suj$ é um número finito $d$: devemos acreditar que a quantidade de seres humanos que existem, já existiram e ainda estão por existir, por maior que seja, é finita.

Mas associar a totalidade dos pontos do espaço-tempo, os referenciais, aos contingentes seres humanos, dispostos em historicidades confusas e metafisicamente dispensáveis enquanto imagens dos eternos e objetivos referenciais, realidades idealizadas de uma Natureza vista como engrenagem infinita, não parece ser a melhor opção. O melhor a fazer, creio eu em minha “tosquice” confessa, é admitir que a cardinalidade dos conjuntos das estruturas $Suj$ é igual a um, isto é, só há um único sujeito ao qual o contínuo dos referencias se associam por meio da função $Obs$, e este sujeito é um velho conhecido do filósofo de Königsberg. Disto vem a sugestão de um postulado “tosco” da epistemologia tratada aos moldes de uma doutrina transcendental do Conhecimento:

Todos os referencias da teoria einsteiniana estão associados a um único Sujeito, o Sujeito Transcendental kantiano, cujas formas a priori da sensibilidade são o espaço e o tempo, tempo este que é a “Durée” de Bergson.


Poderíamos dizer que o Sujeito Transcendental de Kant, munido da duração de Bergson, poderia ser substituído por Deus, ou mesmo pela Idéia de Homem. Entretanto, deixemos tais questões para uma “tosqueira” vindoura. Por enquanto, basta a tese de que todos os referenciais da relatividade são conceitos cuja imagem geratriz é a Subjetividade Transcendental. De fato, a Subjetividade Transcendental se espalha por todos os objetos que se assemelham entre si pela presença de uma vida interna orientada pela ação do tempo e espaço internos e da razão em sentido calculador ou preditivo (homens, anjos, deuses e o próprio Deus são semelhantes neste sentido), mas exclui de seu escopo de aplicabilidade aquilo que não tem tempo e espeço internos e nem uma linguagem a fim da intercomunicação – o inanimado ou inorgânico, por exemplo, estão fora do escopo de aplicação da bela imagem do Sujeito Transcendental cuja alma vibra como o Fogo de Heráclito...

AVANTE, “TOSCOS”!

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

“TOSQUEIRA” 1: A Doutrina das Semelhanças e uma imagem especular da Lógica Modal.

Walter Gomide

Walter Benjamim postula que é possível falar do que é invisível por meio de coisas visíveis. Assim, posso me referir ao mistério do fluxo do tempo por meio das imagens do rio que flui ou do fogo em seu dinamismo ígneo. De alguma forma, a possibilidade de nos referirmos às coisas por meio de outras que lhe são “semelhantes” é a base do pensamento metafísico, e é justamente esta metafísica por trás da “doutrina das semelhanças” que merece ser elucidada por meio de um discurso lógico adequado.


Sem dúvida, o colapso das semelhanças ou das analogias entre dois objetos $a$ e $b$ é a identidade no sentido fregeano: afirmar que $a = b$ é dizer que os objetos $a$ e $b$ têm a mesma referência e modos de apresentação (sentidos) distintos. Mas, antes de haver esta identidade de referentes entre $a$ e $b$, há uma identidade mais fraca que se dá segundo um conceito ou propriedade. Esta identidade é a que se usa como base para o discurso conceitual, de tal forma que a cópula “é”, indicativa de tal identidade, é sinonímia da constante "$\in$" da teoria dos conjuntos. Assim, se digo que dois objetos são semelhantes ($a \approx b$) quero afirmar com isto que há pelo menos um conceito $C$ tal que $Ca$ e $Cb$: tanto $a$ quanto $b$ participam do conceito $C$, isto é, $a \in C$ e $b \in C$. Para que tal semelhança se transforme em identidade, então haveria a necessidade de que, para todo conceito $X$, tivéssemos o seguinte:


$Xa \leftrightarrow Xb$.

Temos assim a famosa lei de Leibniz para a identidade entre objetos:

$(\forall X) (\forall x) (\forall y) (x = y \leftrightarrow (Xx \leftrightarrow Xy))$

A definição de semelhanças entre objetos seria dada da forma seguinte:

$(\forall x) (\forall y) (x \approx y \leftrightarrow (\exists X) (Xx \leftrightarrow Xy)$

Assim, em lógica de segunda ordem, temos de forma clara critérios tanto para a identidade quanto para a semelhança entre objetos.

Mas até que ponto esta semelhança lógica em segunda ordem capta o sentido propriamente metafísico da doutrina das semelhanças de Walter Benjamin? O texto de Benjamin sugere que, antes que eu possa afirmar proposições que afirmem a semelhança de $a$ e $b$ em nível lógico ou conceitual, devemos admitir a semelhança entre $a$ e $b$ no nível imagético ou representacional. De fato, qual o conceito objetivo comum à chama que continuamente vibra e à estrutura do tempo? Ou ainda: o que há de comum, sob o ponto de vista conceitual ou objetivo, entre o infinito e o céu estrelado de Kant? Provavelmente, a resposta a estas duas questões seria um rotundo “nada”! Mas não há dúvida de que as semelhanças que verificamos nestes casos se dão entre as “imagens ou representações” que temos destas realidades tão distantes entre si sob o ponto de vista lógico ou conceitual.

Surge assim a possibilidade de tratarmos a semelhança não através de conceitos, mas sim por meio de representações ou imagens (doravante, imagens ou representações serão designadas por $R$). Uma imagem ou uma representação é um arquétipo imagético, algo como o início de um dado conceito – neste sentido, as representações $R$ são a “velha metáfora” cujo resíduo, segundo Nietzsche, daria origem a um conceito CR

A fim de dar um tratamento lógico às doutrinas das semelhanças, iniciemos com a lógica modal $K$, em que uma interpretação é dada por

$I = <W, R, v>$,

onde $W$ é um conjunto de mundos possíveis, $R$ é a relação de acessibilidade tal que $R \subseteq W \times W$, e $v$ é uma função de valoração. A partir de $I$, estipulemos uma interpretação $U$, definida em uma lógica $K'$ que é uma "imagem especular de $K''$, tal que:


$U = <\sum, \approx, h>$


$\sum$ é um conjunto de objetos quaisquer, $\approx$ é a relação de semelhança entre eles, e $h$ é uma função de aplicabilidade das imagens $R$ a objetos ($h$ é estritamente análoga a $v$, sendo que $h_{a} (R) = 1$ significa que a imagem $R$ é aplicável a $a$, e $h_{a} (R) = 0$ significa que a imagem $R$ é não-aplicável a $a$).

Definamos agora, em estrita analogia com as definições de “necessariamente $A$ é verdadeiro” ($\Box A$) e “possivelmente $A$ é verdadeiro” ($\Diamond A$),  as noções de “imagem $R$ é fortemente aplicável a um objeto $\alpha$” e “imagem $R$ é fracamente aplicável a um objeto $\alpha$”. Temos então:

$R$ é uma imagem fortemente aplicável a $\alpha$ (em símbolos: $\ll _{\alpha} \uparrow R$, em que " $\ll _{\alpha}$ " significa aplicável ao objeto $\alpha$, e “$\uparrow$” significa fortemente) se, e somente se:

1) Para todo objeto $\beta$, tal que $\alpha \approx \beta$, é o caso de $\ll _{\beta} R$ ("$\ll _{\beta} R$" significa que $R$ é aplicável a $\beta$).

Por sua vez, a imagem $R$ é fracamente aplicável a um objeto $\alpha$ ($\ll_{\alpha} \downarrow R$) se, e somente se:

2) Existe um objeto $\beta$, tal que $\alpha \approx \beta$, é o caso de $\ll_{\beta} R$.

Dado um domínio $\sum$ de objetos, escolhamos dentre eles o objeto $\alpha$. Verificamos que a imagem $R$, uma vez sendo fortemente aplicável a $\alpha$, pode relacionada a todo objeto $\beta$ que é semelhante a $\alpha$. Assim sendo, a imagem $R$ corre por todos os objetos que são “familiares a $\alpha$” sem excluir nenhum deles: a imagem $R$ não determina uma região de exclusão; ela não determina ou indica o uso lógico da “negação”, posto que $R$ se aplica a todos os objetos que se assemelham a $\alpha$.

Por sua vez, quando $R$ é fracamente aplicável a $\alpha$, $R$ se aplica a alguns objetos semelhantes a $\alpha$, mas não necessariamente a todos. Se enfatizarmos que da possibilidade não chegamos à necessidade, isto é, se impusermos a cláusula de que $R$ é fracamente aplicável a um dado objeto e simultaneamente não é fortemente aplicável a este mesmo objeto, então $R$ define uma região de exclusão, e assim configura um conceito em sentido lógico, posto que $R$ se permite negar: há coisas às quais $R$ não se aplica - existem os não-$R$´s.

Destas observações, podemos postular um critério pelo qual uma imagem $R$ engendra um conceito (em símbolos, $R ⋑ C$, em que “$R ⋑ C$” nos diz que $R$ engendra o conceito $C$). Tal critério é o seguinte:

$(R ⋑ C) \leftrightarrow (\exists \alpha_{\in \sum}) (\ll_{\alpha} \downarrow R \wedge \neg (\ll_{\alpha} \uparrow R))$.

Uma imagem é alçada à categoria de conceito quando ela é delimitada sob o ponto de vista de sua aplicação: ela não pode ser predicada de todos, mas apenas de alguns. Na qualidade de um conceito, uma imagem tem de ser negada em relação a pelo menos um objeto: devem existir os que não são $R$, pois isto é o prenúncio de que o conceito $C$ que $R$ engendra estará subordinado aos princípios de não-contradição e o do terceiro excluído – a questão das lógicas não-clássicas e suas imagens geratrizes é tema para outra “tosqueira”...

Falemos agora um pouco sobre o pano de fundo das idéias desenvolvidas nesta primeira “tosqueira’: a noção de semelhança conforme Walter Benjamin a considera. Afinal de contas, quando dois objetos são semelhantes módulo Benjamin?

Sob o ponto de vista lógico, como visto anteriormente, dois objetos são semelhantes se há pelos menos um conceito comum por eles compartilhados. Neste sentido, conforme a lógica “especular” encarnada na tripla $U = <\sum, \approx, h>$, a semelhança lógica entre objetos ocorre se as imagens geratrizes dos conceitos compartilhados por tais objetos são representações fracamente aplicáveis a tais objetos. Isto quer dizer, em outras palavras, que há objetos semelhantes aos objetos iniciais da análise aos quais a imagem geratriz dos conceitos não se aplica; e se a imagem não se aplica, os próprios conceitos que garantem a semelhança não se aplicam, o que acarreta a antinomia que afirma que dois objetos são semelhantes se, e somente se, não forem semelhantes.

Entretanto, tal antinomia é facilmente evitada, na teoria das semelhanças de Benjamin, se estivermos atentos ao fato de que a semelhança da qual Benjamin fala não é conceitual, mas de natureza metafísica ou essencialmente imagética: o que garante a semelhança universal entre os objetos é a existência de uma imagem comum aplicável a todos os objetos.

Analisando tais fatos dentro da lógica especular $K´$, as coisas se dariam assim: primeiramente, estipulemos a semelhança universal entre os objetos através do postulado de que, para quaisquer objetos $x$ e $y$, $x$ é semelhante a $y$ ($x \approx y$). Dito de outra maneira, o postulado da semelhança universal afirma a existência de uma imagem que se aplica fortemente a todos os objetos, isto é: 

$(\forall x) (\forall y) (\exists Z) (\ll_{x}   \uparrow Z   \wedge   \ll_{y}   \uparrow Z)$

Chamemos a imagem $Z$ de $[d/dt]$ (uma alusão óbvia ao cálculo diferencial e ao dinamismo ontológico de Heidegger expresso à la Deleuze). Com tal imagem, temos um critério para a semelhança entre objetos, a saber:

$(x \approx y) \leftrightarrow [d/dt] (x) \wedge [d/dt] (y)$.

Portanto, é lógico que, para todo $x$, temos que: 

$\ll_{x} \uparrow [d/dt]$

Mas o que é a imagem $[d/dt]$? A resposta é simples: é a imagem do Ser, a imagem ontológica mais fundamental que aglutina todos os entes (objetos) sob a ótica da semelhança. E tal imagem não gera conceito, mas é intrinsicamente um amálgama imagético que se aplica há tudo que há e que garante a similaridade de todas as coisas; é um princípio de unidade do real e, como tal, é metafísico – a imagem metafísica por excelência. 

E quanto ao oposto do Ser? Chamemo-lo de Nada, também uma imagem metafísica que anda de mãos dadas com sua antípoda (eis que surge Heidegger...). Mas nada de conceitos nesta ordem metafísica: tanto o Ser quanto o Não-Ser, postos como conceitos, geram o imobilismo ontológico de Parmênides, e tal perspectiva se coloca em claro confronto com o dinamismo ontológico que o Ser, o nosso diferencial $[d/dt]$, uma taxa de variação no tempo do discurso ôntico, pressupõe em seu âmago. 

FIM DA TOSQUICE 

AVANTE, “TOSCOS”!