Allan Ferreira
Encontramos passagens de Assim falava Zaratustra que podem elucidar nosso enunciado: “[...] o que persuade o vivente para que obedeça e mande, e mandando, exerça a obediência? [...]” e logo depois “[...] onde encontrei vida, ali encontrei vontade de potência; até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor [...]”. Acrescenta ainda: “[...] só onde há vida há vontade. Não vontade de viver, mas ‘como eu ensino’ vontade de potência [...]”. Segunda Parte, Da Superação de si mesmo.
Encontramos passagens de Assim falava Zaratustra que podem elucidar nosso enunciado: “[...] o que persuade o vivente para que obedeça e mande, e mandando, exerça a obediência? [...]” e logo depois “[...] onde encontrei vida, ali encontrei vontade de potência; até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor [...]”. Acrescenta ainda: “[...] só onde há vida há vontade. Não vontade de viver, mas ‘como eu ensino’ vontade de potência [...]”. Segunda Parte, Da Superação de si mesmo.
“A ‘coisa em si’ é tão enganosa quanto um ‘sentido em si’, uma ‘significação em si’.
Não evidenciamos lastro com o real em ‘estado de coisas em si’, contudo um meio
apolíneo precisa sempre ser primeiramente ordenado para que possa haver um estado de
coisas. O ‘o que é isso? ’ constitui um questionamento de sentido a partir da perspectiva
da alteridade. A ‘essência’, no singular, é algo da perspectiva e já pressupõe a
contrapartida de uma multiplicidade. Percebemos então o mérito da questão, ‘o que é
isso para mim? ’(para nós, para tudo que vive etc.).” Pluralismo em Nietzsche.
“Até agora foi sobre Bem e Mal que pior se meditou: foi sempre um assunto perigoso
demais. A consciência, a boa reputação, o inferno, em certas circunstâncias a própria
polícia, não permitiam e não permitem nenhuma imparcialidade; em presença da moral,
justamente, como em face de toda autoridade, não se deve pensar, e muito menos falar:
aqui se obedece! Desde que há mundo, nenhuma autoridade ainda teve boa vontade para
se deixar tomar como objeto de crítica; e criticar logo a moral, tomar a moral como
problema, como problemática: como? Isso não era – isso não é – imoral?” Nietzsche,
Aurora.
“Com um grande objetivo, somos superiores até à justiça, não apenas à nossos atos e
nossos juízes” Nietzsche, Gaia Ciência.
Notamos uma regular crítica e dúvida em relação a alguns conceitos elaborados por
Nietzsche: o que significa estar ‘para além do bem mal’? O Übermensch ou Além do
Homem projetado por Nietzsche, aquele que cria seus próprios valores, como ele tece
sua transvaloração sobre o modo que interpretamos ‘justiça’ até aqui? Partiremos então
para nossa análise dos meios que o Nietzsche procurou nos fornecer para sua ‘ética da
justiça’ e de que modo o Übermensch nietzschiano irá se posicionar.
Objetivamos um estado de direito, no entanto, este estado surge do brutal aniquilamento
dos instintos, das pulsões individuais, criando regras de comportamentos morais, que
visam à manutenção do poder estabelecido. Este estado visa domesticar, criar corpos
obedientes e passivos. A justiça surge como um método, com base no princípio da
igualdade, um caminho para compensar o ressentimento e o peso da servidão, mas ao
final apenas mantém suas causas. O manto sagrado dos Direitos Humanos, a dignidade
do trabalho assalariado, tudo isso não passa de um artifício de nivelamento. O
humanismo, no fundo, se revela por uma escravidão alienada. Nosso ‘dever ser’
Kantiano é o direito do outro sobre nós, como imperativo categórico mais forte e mais
cruel. Para tais relações de poder há tanta justiça quanto vale seu poder. Um conflito
com tensão disforme, entre o apolíneo e dionisíaco, permanece latente.
Da maneira de Nietzsche torna-se notório que os gritos de justiça em suma são dados
pelos homens do ressentimento, da moral, os que estão fragilizados, são sempre os
reativos que clamam por justiça aos ativos. Eles se sentem injustiçados, sentem que não
têm o que merecem, pedem por uma compensação, clamam por justiça/igualdade.
Compreenderemos aqui quase que como uma vingança por parte do Estado. Nossa
cultura conhece a justiça apenas do modo ressentido, apenas daquele que não consegue
deixar o passado para trás, apenas daquele que não consegue, não pode, agir. Mas esta
justiça não traz criação, porque o próprio modo de funcionamento do homem ressentido
é um perpétuo incômodo e negação, um constante tornar o mundo cinzento, sem
excitação.
“O direito dos outros é a concessão, feita por nosso sentimento de poder, ao sentimento
de poder desses outros. Quando a nossa vontade de potência mostra-se abalada e
quebrantada, cessam os nossos direitos” – Nietzsche, Aurora.
A escatologia dos reativos: “É mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha...
Um dia… um dia Deus voltará! E ele te julgará! Pobre de mim, mas você vai ver, sua
hora vai chegar!”. O homem do ressentimento é fraco, não consegue esquecer, não
consegue superar, não cresce com o que lhe acontece, ele maldiz o devir. Hoje
passamos da crença em Deus para a crença no Estado e na Ciência, muletas metafísicas,
mas o ideal parece ainda não ter mudado, permanecendo desde sempre “livrai-nos do
mal, amém”.
“Oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como eles anseiam ser
carrascos! Entre eles encontram-se em abundância os vingativos mascarados de juízes,
que permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra justiça e andam
sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em todo aquele que não tenha olhar
insatisfeito e siga seu caminho de ânimo tranquilo” – Nietzsche, Genealogia da Moral,
terceira dissertação.
O homem fraco é aquele que crias valores morais com o que lhe acontece, ele é reativo,
ele age para se contrapor, “algo me aconteceu, não posso deixar assim, não posso
deixar por menos”. Quem quer revolucionar o mundo? Só aquele que o condena, o
calunia, o apunhala pelas costas. A justiça é sempre instrumento daquele que era fraco
demais para agir primeiro, e por isso não quer que ninguém mais o faça, tornando
instrumento para arrebanhar os oprimidos na busca pelo ideal de igualdade.
Uma metafísica para carrascos se mostra a justiça. Nada é tão grave como notar que
devido esta compreensão niilista de mundo, teremos um estado reativo que julga a vida
como insatisfatória, insuficiente, procurando se vingar dos outros e das suas diferenças.
Não queremos esta justiça, mas queremos sim a superação de si, queremos transmutar o
fraco em nós, conduzir o escravo dentro de nós (este ‘eu’ moral), não lhe dando esta
soberba. Assim libertarmos, da justiça, essa dos homens reativos, para uma ética do
Übermensch de Nietzsche.
Não utilizaremos então da punição, não, não sejamos tão pequenos assim. Só o fraco de
espírito procura restituir-se de algo, o forte cresce para cima de si mesmo. Não significa
ter a capacidade de perdoar, mas de primeiramente não ofender-se, esquecer porque
nem mesmo lhe chegou a causar indignação...
“Tende-se um inimigo, não lhe pagueis o mal com o bem: pois isso o envergonharia.
Mostrai isto sim, que ele vos fez algo de bom […] Inventai-me, então, a justiça que
absolva a todos, exceto aquele que julga!” Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Da
Picada da Víbora.
Do mesmo modo que não julgamos quando a natureza, ao longo da história humana,
através de suas intempéries matou milhares, não cabe a nós julgar o universo, nem aos
homens. A natureza age com a potência de suas forças em conflito, nunca em
aniquilamento, eu que saiba me relacionar com ela! Acusar a natureza de imperfeita
vem de uma impotência do homem para atuar no mundo. A vida se torna estéril quando
a acusamos e julgamos. A grande libertação consiste em restituir a liberdade das forças
ativas e reativas que regem o mundo, destituir todo sistema punitivo. A vida do forte e
do potente não precisa de tutela, nem da justiça, tudo se dá na relação, isto porque a
potência sempre encontra o melhor modo de relacionar-se, ela não precisa de agente
exterior, ela é basicamente isso, o saber se relacionar, ela não precisa da lei e suas
regras, pois ela não quer matar a reatividade, ao contrário ela precisa dela mutualmente.
“O quanto de injúria ele pode suportar sem sofrer é, por fim, a própria medida de sua
riqueza. Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que se
permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes os seus ofensores. ‘que me importam
meus parasitas? ’, diria ela. Eles podem viver e prosperar – sou forte o bastante para
isso” – Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda Dissertação.
Alcançaremos o dia que o homem será vitalmente liberto que prescindirá desta justiça?
Quando o homem voará tão alto que a justiça lhe parecerá um pequeno ponto lá
embaixo? Quando o homem comparará a justiça à pedra lascada de seus antepassados?
Quando? Nietzsche pensa, para um futuro ainda não discernível, uma superação da
própria justiça, essa justiça humana, demasiado humana. Queremos dançar onde a
justiça soa desafinada, queremos voar onde a justiça parece distante…
“Para a reeducação do gênero humano. – Vocês, homens prestativos e bemintencionados,
ajudem na obra de erradicar do mundo o conceito de punição, que o
infestou inteiramente! Não há erva mais daninha! Ele não apenas foi introduzido nas
consequências de nossas formas de agir – e como já é terrível e irracional entender
causa e efeito como causa e punição, mas fez-se mais, privando da inocência, com essa
infame arte interpretativa do conceito de punição, toda a pura causalidade do acontecer.
A insensatez chegou ao ponto de fazer sentir a existência mesma como punição – é
como se a educação do gênero humano tivesse sido orientada, até agora, pelas fantasias
de carcereiros e carrascos!” (Friedrich Nietzsche, Aurora).
“Justiça – Melhor se deixar roubar do que ter espantalhos ao seu redor – eis o meu
gosto. E, em todas as circunstâncias, isso é questão de gosto – e nada mais!” Nietzsche,
Gaia Ciência.
“... o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a
qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial
inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos
intactos, incessantemente combatem com novos meios e invenções...” Nietzsche,
Genealogia da Moral.
O conceito de força e o pensar enquanto força atribuidora de sentido, o legado de
Nietzsche na filosofia de Gilles Deleuze, por Maurício MangueiraI; Eduardo
Maurício da Silva BonfimII.
“ É inegável a influência que a obra de Nietzsche exerceu na filosofia de Deleuze.
Inaugurando, de certo modo, um novo estilo de pensamento na cultura do Ocidente,
Nietzsche conferiu novas interpretações a certos conceitos filosóficos considerados
imutáveis e eternos, como os conceitos de verdade, de essência e de força. Utilizando-se
da tipologia de forças nietzschianas, Deleuze nos mostra como o saber do Ocidente se
funda em um pensamento que o filósofo francês denominará de representacional, em
oposição a um pensamento da diferença, elucidando como estas duas formas de
conhecer se correlacionam a tipos distintos de forças. Assim, o conceito de força
cunhado por Nietzsche permitirá a Deleuze não somente traçar uma crítica ao saber
ocidental – predominantemente representacional –, como também desenvolver sua
própria filosofia da diferença, profundamente influenciada pela crítica e pelo
perspectivismo nietzschianos.
A cultura ocidental se fez e ainda se faz pelo querer ou desejo de encontrar ou constituir
para si conhecimentos, mas não qualquer conhecimento. Buscam-se conhecimentos que
sejam verdadeiros, e nesta caminhada uma das principais questões, senão a principal,
diz respeito às concepções que o sujeito cria para si ao obter ou constituir seus
conhecimentos. As buscas e seus resultados sempre foram colocados em termos de
adequação, descoberta ou desvelamento de algo que seria a realidade. Já no que diz
respeito ao sujeito, as ideias sempre foram pensadas em termos de cópias ou
representações de algo ou de alguém. Nietzsche, por seu lado, no interior desta
problemática, vem introduzir os conceitos de sentido e valor, ambos relacionados aos
conceitos de corpo e força como elementos que não devem ser menosprezados nesta
busca do conhecimento, mas, ao contrário, devem ser privilegiados.
Mas como Nietzsche pensa esta questão? Pensar o conceito de força para Nietzsche é,
na verdade, pensar em forças. Uma força, segundo o pensador alemão, se define pelo
complexo de relações que ela mantém com outras forças, e é justamente dessa interação
entre diferentes forças que os mais variados corpos são produzidos. Dito de outro modo,
um corpo ou um objeto nada mais é do que a expressão ou produto de um determinado
conjunto de forças em um dado momento.
Não há objeto (fenômeno) que já não seja possuído, visto que, nele mesmo, ele é, não
uma aparência, mas o aparecimento de uma força. Toda força está, portanto, numa
relação essencial com outra força. O ser da força é o plural; seria rigorosamente absurdo
pensar a força no singular. ‘Uma força é dominação, mas é também o objeto sobre o
qual uma dominação se exerce. ’(Deleuze, 1976).
Neste sentido, podemos afirmar que não só o fenômeno – objeto – é força, mas também
que o conhecedor, isto é, o sujeito de conhecimento, é um corpo, e como tal, produto ele
também de forças. Isto significa dizer que não somente o objeto (enquanto fenômeno),
como também o sujeito (enquanto corpo pensante) são antes de tudo um conjunto de
forças. É exatamente este caráter criador e plural da força em Nietzsche que fará esse
conceito adquirir tamanha importância na filosofia de Deleuze. Afinal, afirmar uma
pluralidade de forças na constituição de um dado fenômeno – seja ele objeto ou sujeito
– é, por conseguinte, afirmar a pluralidade do próprio fenômeno. Desse modo, um
"mesmo" fenômeno pode apresentar diversos sentidos, dependendo das forças que
estejam nele presentes bem como daquelas que se apropriam dele no momento. Aqui já
vemos se desenhar a nítida correlação entre os conceitos de força e de sentido: na
determinação do sentido de alguma coisa importa a determinação ou qualidade das
forças que estão prevalecendo ou sobressaindo-se neste processo de determinação.
Este modo de entender a produção de sentido de algo ou alguém nos apresenta, em
verdade, a importância de outra característica fundamental da filosofia nietzschiana do
conhecimento: a interpretação. Ora, se um fenômeno e sujeito são forças, a
determinação do sentido de um fenômeno não está separada das forças que entram em
contato com o fenômeno, produzindo-lhe um sentido, isto é, dando-lhe uma
interpretação. E esta é produzida pelas forças que compõem o corpo do sujeito da
interpretação. Este privilegiará uma ou algumas das forças que compõem o fenômeno,
em função das forças que compõe ele próprio. Este caráter interpretativo do corpopensamento-força
em Nietzsche é, com certeza, uma das ideias que maior impacto
provocou no percurso filosófico de Deleuze. No entanto, ela não é uma ideia simples.
Podemos dizer que todo corpo, seja ele um animal, uma planta, o homem, uma ideia,
etc., ao entrar em contato com outro corpo, sempre realiza uma interpretação deste
corpo em função das forças que o constituem e que o dominam naquele momento, e que
possibilitam ou não o entrar – e a forma de entrar – na própria relação. Na deriva do
homem em sua busca pelo conhecimento, a linguagem, isto é, a força e a organização
das palavras, adquirem certa importância, a ponto de erroneamente considerarmos
interpretação como interpretação linguística, oral ou escrita.”
Para Deleuze, o pensador – quiçá todo e qualquer sujeito humano – é um atribuidor de
sentido, é aquele capaz de interpretar diversos tipos de signos, algumas das diversas
forças existentes em um fenômeno, com a condição que não esqueçamos que nele são as
suas forças que estão a produzir o sentido. Quando algo aparece, quando algo emerge
dotado de certa natureza ou identidade, esta natureza não é a da essência do objeto, e
sim aquilo que emergiu do encontro e ação de determinadas forças.
Jamais encontraremos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológico ou até
mesmo físico) se não sabemos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora,
que dela se apodera ou nela se exprime. Um fenômeno não é uma aparência, nem
mesmo uma aparição, mas um signo, um sintoma que encontra seu sentido numa força
atual. A filosofia inteira é uma sintomatologia, uma semiologia. As ciências são um
sistema sintomatológico e semiológico. (Deleuze, 1976).
A respeito destas forças que se apropriam e fazem emergir um sentido. Sendo o
fenômeno uma expressão de forças que se apropriaram de certas forças, podemos dizer
que a história da humanidade é uma história dessas apropriações, dessas atribuições de
sentido. Mas é possível conhecermos quais são essas forças que atribuem sentido ou, ao
menos, algumas dessas forças? Nos homens, as forças em consonância com a
linguagem e a vida criam valores, o que é bom ou ruim, o que é bem ou mal. Mas essas
criações/nomeações dos valores expressam apenas as forças que compõem os corpos
que os expressam.
É neste sentido que Deleuze nos diz que toda interpretação, de forma geral, é uma
avaliação. Mas, ao avaliar, quem avalia sempre o faz de acordo com determinados
valores que já são expressões das forças que o constituem.
Assim, avancemos mais um passo na teoria nietzschiana: vimos que as forças
apresentam uma pluralidade de sentidos, mas o sentido, por sua vez, implica o conceito
de valor. O pensador, o filósofo ou qualquer homem carrega consigo certos valores que
determinarão o modo como ele avalia um fenômeno. A importância do valor para a
crítica nietzschiana diz respeito ao fato de que esse conceito introduz na filosofia
ocidental o ponto de vista diferencial por meio do qual os próprios valores serão
avaliados. Isto significa dizer que os valores, eles mesmos, já são efeitos de avaliações.
Só é possível atribuir valores a partir de uma avaliação, de uma determinada
perspectiva. Em contrapartida, podemos nos perguntar quais as condições que produzem
ou possibilitam as próprias avaliações. Será que devemos cair num círculo vicioso que
afirmaria que os valores criam avaliações que pressupõem valores, etc.? Quais são então
as condições que fundam os valores e as avaliações? Não existiria algo mais básico que
daria alma e corpo aos valores e às avaliações?
É por isto que Nietzsche nos fala em valores ou avaliações altas ou baixas, nobres ou
mesquinhas. Não se pode separar os valores e as avaliações de um determinado modo
de vida, de uma maneira de viver. Quando avalia alguma coisa, o pensador
necessariamente a considera de acordo com a sua perspectiva, privilegia certas forças
que, em última instância, se compõem com suas próprias forças, com a sua própria
maneira de pensar. Se todo corpo é um produto de forças, é óbvio que o pensador se
constitui, ele próprio, em uma pluralidade de forças dotadas de um sentido. Ao
interpretar um fenômeno, é inevitável, então, que o filósofo tente se apropriar dele,
conferindo-lhe um sentido ou novos sentidos.
As avaliações, referidas a seu elemento, não são valores, mas maneiras de ser, modos de
existência daqueles que julgam e avaliam, servindo precisamente de princípios para os
valores em relação aos quais eles julgam. Por isso temos sempre as crenças, os
sentimentos, os pensamentos que merecemos em função de nossa maneira de ser ou de
nosso estilo de vida. Há coisas que só se pode dizer, sentir ou conceber, valores nos
quais só se pode crer com a condição de avaliar "baixamente", de viver e pensar
"baixamente". Eis o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas
representam o elemento diferencial do qual derivam o valor dos próprios valores.
(Deleuze, 1976).
Esta correlação existente entre o pensamento e a vida é outra característica inevitável e
central da filosofia de Nietzsche, característica que Deleuze utilizará na composição do
seu próprio sistema filosófico. Nietzsche talvez tenha sido o filósofo que melhor
ressaltou a problemática existente entre pensamento e política, esta última entendida
justamente enquanto afirmação de um determinado modo de vida ou de viver. É a isto
que Deleuze se refere quando nos fala de um elemento diferencial do qual derivaria o
valor dos valores. Este elemento não seria outra coisa senão a vida do pensador: é a vida
quem avalia, em último caso, os valores. Ela é o elemento que decidirá se um
determinado valor ou um determinado pensamento convém a sua afirmação ou a sua
própria destruição. Assim, encontramos em "Nietzsche":
“O filósofo do futuro é ao mesmo tempo o explorador dos velhos mundos, cumes e
cavernas, e só cria à força de se lembrar de qualquer coisa que foi essencialmente
esquecida. Esta qualquer coisa, segundo Nietzsche, é a unidade do pensamento e da
vida. Unidade complexa: um passo para a vida, um passo para o pensamento. Os modos
de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A
vida activa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida.” (Deleuze,
2007).
É por este motivo que Nietzsche afirmará que ele foi o único filósofo até então a
conduzir uma verdadeira crítica dos valores, já que todos os projetos anteriores de
crítica falharam exatamente neste aspecto, em não considerar o elemento diferencial dos
valores, o seu elemento criador, isto é, a própria vida ou os modos de viver do pensador.
A crítica diz respeito, então, não a uma crítica dos valores existentes: fazer uma crítica
dos valores não é fazer um inventário de todos os valores, denunciando aquilo que
supostamente seriam os falsos valores e exaltando os verdadeiros. Essa é a crítica
comum, encontrável mesmo em toda perspectiva revolucionária: "Eu na verdade, você
no erro!".
Ao contrário, uma crítica dos valores só pode dizer respeito a uma crítica das forças que
estão na origem da sua criação: de que perspectiva ou de que ponto de vista um
determinado valor se apresenta como superior, quais modos de vida ou de viver
permitiram a sua criação, ou ainda, de forma perspectiva, quais possibilidades de vida
ele cria. É neste ponto que encontramos o limite de uma perspectiva representacional. A
vida ou os modos de vida, as forças que os ensejam, são o que há de irrepresentável. A
vida e o viver são inevitavelmente imanentes aos corpos/forças que compõem a própria
vida/viver. A vida e o viver de um corpo jamais podem ser vistos e vividos do exterior,
representacionalmente, e caso isso venha a ser feito já seria efeito de certo viver, de
certo estilo de vida. E se a crítica diz respeito à criação e não à representação é
justamente porque ela se refere à vida como elemento diferencial da criação de valores.
Seguido este raciocínio, torna-se evidente que o pensamento deixa de ser na sua
nascente um ato reflexivo, e nos deparamos com um tipo de conhecimento que não é
reconhecimento ou representacional. Não se trata mais de reconhecer valores tidos
como superiores e sim de criação e afirmação de valores, criar modos ou possibilidades
de vida. Deleuze nos mostra como o problema do conhecimento em Nietzsche passa
necessariamente por essa questão: em determinado momento da história do Ocidente, o
conhecimento tomou a dianteira, se naturalizou, passou a ser considerado como um fim
em si mesmo, subordinando assim o pensamento e a própria vida, opondo-se à própria
vida e ao pensamento. Mas não qualquer conhecimento. Ou seja, em dado momento
histórico, atribuíram-se ao conhecimento valores superiores à própria vida, valores que
deveriam ser reconhecidos como verdades, estas, superiores à própria vida. É
precisamente a isto que a crítica nietzschiana dos valores se refere: é necessário
investigar qual modo de vida quer um conhecimento que seja superior a si, que atribui
ao conhecimento um valor superior a ela mesma, quais forças exigem do pensamento
uma atividade puramente cognitiva.
Mas, ao realizar a crítica à busca pelo conhecimento verdadeiro – de Sócrates até Hegel
– e ao modo de vida que o instituiu ou o institui, Nietzsche está trazendo para o
Ocidente um novo sentido que toma para si o pensar e o próprio conhecer.
Mas então a crítica, concebida como crítica do próprio conhecimento, não exprimiria
novas forças capazes de dar outro sentido ao pensamento? Um pensamento que iria até
o fim do que a vida pode um pensamento que conduziria a vida até o fim do que ela
pode. Em lugar de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que afirme a
vida. A vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo
da vida. Ambos iriam ao mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites,
seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar
significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida. (Deleuze, 1976).
Mas a palavra vida não nos diz muito, pois todos os seres humanos são seres vivos.
Além do mais, não existe apenas um modo de vida, mas vários modos.
O que Deleuze deseja evidenciar por meio da obra de Nietzsche é não somente o triunfo
do pensamento representacional na história da cultura ocidental, mas principalmente a
vida reativa que se lhe encontra associada. O pensamento deixa de ser uma força
criadora para se transformar em aparelho de observar e registrar, de entranhas
congeladas. Se o pensador alemão já falava em uma vitória das forças reativas e de uma
vida reativa, o filósofo francês nos mostra como esse caráter reativo está correlacionado,
por sua vez, a um pensamento reativo, um pensamento que esqueceu o movimento
primeiro da criação, que se pauta pelo já criado e naturalizado, e que, desta forma,
caracteriza-se pela busca do conhecimento do que já existe, transformando tal
reconhecimento ou representação de valores em verdades consideradas superiores. Esse
predomínio das forças reativas no pensar acarreta algumas consequências. Da mesma
forma que as forças reativas depreciam e aniquilam a vida, separando-a daquilo que ela
pode, podemos observar esse mesmo efeito no pensamento: as forças reativas subtraem
as forças ativas do pensamento, separando-o assim de sua potência criadora. A atividade
do pensamento se torna então predominantemente reativa, e o seu objetivo não passa
agora de um desejo de reconhecimento.”
Minhas considerações:
O pensamento nietzschiano no que toca a sua extemporaneidade mais singular visa nos
aproximar da realidade orgânica e sua vital potência, sem a necessidade dos demais
artifícios e ideais ascéticos considerando estes como sendo sintomas castradores e
niveladores. Um escape do rebanho uniforme desertificado, fuga de um solo onde a
estrela bailarina de Nietzsche jamais poderia brotar e então o reencontro com nossos
próprios instintos e afetos singulares através dos quais, agora sim, dada a tensão entre o
apolíneo e o dionisíaco, a arte criadora terá sua nova oportunidade para amar o real
como ele se apresenta.
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