Tosqueiras Musicais

sexta-feira, 14 de abril de 2017

"TOSQUEIRA" 14: Nietzsche e a teoria das forças (a justiça).

Allan Ferreira

Encontramos passagens de Assim falava Zaratustra que podem elucidar nosso enunciado: “[...] o que persuade o vivente para que obedeça e mande, e mandando, exerça a obediência? [...]” e logo depois “[...] onde encontrei vida, ali encontrei vontade de potência; até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor [...]”. Acrescenta ainda: “[...] só onde há vida há vontade. Não vontade de viver, mas ‘como eu ensino’ vontade de potência [...]”. Segunda Parte, Da Superação de si mesmo. 

“A ‘coisa em si’ é tão enganosa quanto um ‘sentido em si’, uma ‘significação em si’. Não evidenciamos lastro com o real em ‘estado de coisas em si’, contudo um meio apolíneo precisa sempre ser primeiramente ordenado para que possa haver um estado de coisas. O ‘o que é isso? ’ constitui um questionamento de sentido a partir da perspectiva da alteridade. A ‘essência’, no singular, é algo da perspectiva e já pressupõe a contrapartida de uma multiplicidade. Percebemos então o mérito da questão, ‘o que é isso para mim? ’(para nós, para tudo que vive etc.).” Pluralismo em Nietzsche. 

“Até agora foi sobre Bem e Mal que pior se meditou: foi sempre um assunto perigoso demais. A consciência, a boa reputação, o inferno, em certas circunstâncias a própria polícia, não permitiam e não permitem nenhuma imparcialidade; em presença da moral, justamente, como em face de toda autoridade, não se deve pensar, e muito menos falar: aqui se obedece! Desde que há mundo, nenhuma autoridade ainda teve boa vontade para se deixar tomar como objeto de crítica; e criticar logo a moral, tomar a moral como problema, como problemática: como? Isso não era – isso não é – imoral?” Nietzsche, Aurora. 

“Com um grande objetivo, somos superiores até à justiça, não apenas à nossos atos e nossos juízes” Nietzsche, Gaia Ciência. 

Notamos uma regular crítica e dúvida em relação a alguns conceitos elaborados por Nietzsche: o que significa estar ‘para além do bem mal’? O Übermensch ou Além do Homem projetado por Nietzsche, aquele que cria seus próprios valores, como ele tece sua transvaloração sobre o modo que interpretamos ‘justiça’ até aqui? Partiremos então para nossa análise dos meios que o Nietzsche procurou nos fornecer para sua ‘ética da justiça’ e de que modo o Übermensch nietzschiano irá se posicionar. 

Objetivamos um estado de direito, no entanto, este estado surge do brutal aniquilamento dos instintos, das pulsões individuais, criando regras de comportamentos morais, que visam à manutenção do poder estabelecido. Este estado visa domesticar, criar corpos obedientes e passivos. A justiça surge como um método, com base no princípio da igualdade, um caminho para compensar o ressentimento e o peso da servidão, mas ao final apenas mantém suas causas. O manto sagrado dos Direitos Humanos, a dignidade do trabalho assalariado, tudo isso não passa de um artifício de nivelamento. O humanismo, no fundo, se revela por uma escravidão alienada. Nosso ‘dever ser’ Kantiano é o direito do outro sobre nós, como imperativo categórico mais forte e mais cruel. Para tais relações de poder há tanta justiça quanto vale seu poder. Um conflito com tensão disforme, entre o apolíneo e dionisíaco, permanece latente. 

Da maneira de Nietzsche torna-se notório que os gritos de justiça em suma são dados pelos homens do ressentimento, da moral, os que estão fragilizados, são sempre os reativos que clamam por justiça aos ativos. Eles se sentem injustiçados, sentem que não têm o que merecem, pedem por uma compensação, clamam por justiça/igualdade. Compreenderemos aqui quase que como uma vingança por parte do Estado. Nossa cultura conhece a justiça apenas do modo ressentido, apenas daquele que não consegue deixar o passado para trás, apenas daquele que não consegue, não pode, agir. Mas esta justiça não traz criação, porque o próprio modo de funcionamento do homem ressentido é um perpétuo incômodo e negação, um constante tornar o mundo cinzento, sem excitação. 

“O direito dos outros é a concessão, feita por nosso sentimento de poder, ao sentimento de poder desses outros. Quando a nossa vontade de potência mostra-se abalada e quebrantada, cessam os nossos direitos” – Nietzsche, Aurora. 

A escatologia dos reativos: “É mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha... Um dia… um dia Deus voltará! E ele te julgará! Pobre de mim, mas você vai ver, sua hora vai chegar!”. O homem do ressentimento é fraco, não consegue esquecer, não consegue superar, não cresce com o que lhe acontece, ele maldiz o devir. Hoje passamos da crença em Deus para a crença no Estado e na Ciência, muletas metafísicas, mas o ideal parece ainda não ter mudado, permanecendo desde sempre “livrai-nos do mal, amém”. 

“Oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como eles anseiam ser carrascos! Entre eles encontram-se em abundância os vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de ânimo tranquilo” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação. 

O homem fraco é aquele que crias valores morais com o que lhe acontece, ele é reativo, ele age para se contrapor, “algo me aconteceu, não posso deixar assim, não posso deixar por menos”. Quem quer revolucionar o mundo? Só aquele que o condena, o calunia, o apunhala pelas costas. A justiça é sempre instrumento daquele que era fraco demais para agir primeiro, e por isso não quer que ninguém mais o faça, tornando instrumento para arrebanhar os oprimidos na busca pelo ideal de igualdade. 

Uma metafísica para carrascos se mostra a justiça. Nada é tão grave como notar que devido esta compreensão niilista de mundo, teremos um estado reativo que julga a vida como insatisfatória, insuficiente, procurando se vingar dos outros e das suas diferenças. Não queremos esta justiça, mas queremos sim a superação de si, queremos transmutar o fraco em nós, conduzir o escravo dentro de nós (este ‘eu’ moral), não lhe dando esta soberba. Assim libertarmos, da justiça, essa dos homens reativos, para uma ética do Übermensch de Nietzsche. 

Não utilizaremos então da punição, não, não sejamos tão pequenos assim. Só o fraco de espírito procura restituir-se de algo, o forte cresce para cima de si mesmo. Não significa ter a capacidade de perdoar, mas de primeiramente não ofender-se, esquecer porque nem mesmo lhe chegou a causar indignação... 

“Tende-se um inimigo, não lhe pagueis o mal com o bem: pois isso o envergonharia. Mostrai isto sim, que ele vos fez algo de bom […] Inventai-me, então, a justiça que absolva a todos, exceto aquele que julga!” Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Da Picada da Víbora. 

Do mesmo modo que não julgamos quando a natureza, ao longo da história humana, através de suas intempéries matou milhares, não cabe a nós julgar o universo, nem aos homens. A natureza age com a potência de suas forças em conflito, nunca em aniquilamento, eu que saiba me relacionar com ela! Acusar a natureza de imperfeita vem de uma impotência do homem para atuar no mundo. A vida se torna estéril quando a acusamos e julgamos. A grande libertação consiste em restituir a liberdade das forças ativas e reativas que regem o mundo, destituir todo sistema punitivo. A vida do forte e do potente não precisa de tutela, nem da justiça, tudo se dá na relação, isto porque a potência sempre encontra o melhor modo de relacionar-se, ela não precisa de agente exterior, ela é basicamente isso, o saber se relacionar, ela não precisa da lei e suas regras, pois ela não quer matar a reatividade, ao contrário ela precisa dela mutualmente. 

“O quanto de injúria ele pode suportar sem sofrer é, por fim, a própria medida de sua riqueza. Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que se permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes os seus ofensores. ‘que me importam meus parasitas? ’, diria ela. Eles podem viver e prosperar – sou forte o bastante para isso” – Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda Dissertação.

Alcançaremos o dia que o homem será vitalmente liberto que prescindirá desta justiça? Quando o homem voará tão alto que a justiça lhe parecerá um pequeno ponto lá embaixo? Quando o homem comparará a justiça à pedra lascada de seus antepassados? Quando? Nietzsche pensa, para um futuro ainda não discernível, uma superação da própria justiça, essa justiça humana, demasiado humana. Queremos dançar onde a justiça soa desafinada, queremos voar onde a justiça parece distante… 

“Para a reeducação do gênero humano. – Vocês, homens prestativos e bemintencionados, ajudem na obra de erradicar do mundo o conceito de punição, que o infestou inteiramente! Não há erva mais daninha! Ele não apenas foi introduzido nas consequências de nossas formas de agir – e como já é terrível e irracional entender causa e efeito como causa e punição, mas fez-se mais, privando da inocência, com essa infame arte interpretativa do conceito de punição, toda a pura causalidade do acontecer. A insensatez chegou ao ponto de fazer sentir a existência mesma como punição – é como se a educação do gênero humano tivesse sido orientada, até agora, pelas fantasias de carcereiros e carrascos!” (Friedrich Nietzsche, Aurora). 

“Justiça – Melhor se deixar roubar do que ter espantalhos ao seu redor – eis o meu gosto. E, em todas as circunstâncias, isso é questão de gosto – e nada mais!” Nietzsche, Gaia Ciência. 

“... o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente combatem com novos meios e invenções...” Nietzsche, Genealogia da Moral. 

O conceito de força e o pensar enquanto força atribuidora de sentido, o legado de Nietzsche na filosofia de Gilles Deleuze, por Maurício MangueiraI; Eduardo Maurício da Silva BonfimII. 

“ É inegável a influência que a obra de Nietzsche exerceu na filosofia de Deleuze. Inaugurando, de certo modo, um novo estilo de pensamento na cultura do Ocidente, Nietzsche conferiu novas interpretações a certos conceitos filosóficos considerados imutáveis e eternos, como os conceitos de verdade, de essência e de força. Utilizando-se da tipologia de forças nietzschianas, Deleuze nos mostra como o saber do Ocidente se funda em um pensamento que o filósofo francês denominará de representacional, em oposição a um pensamento da diferença, elucidando como estas duas formas de conhecer se correlacionam a tipos distintos de forças. Assim, o conceito de força cunhado por Nietzsche permitirá a Deleuze não somente traçar uma crítica ao saber ocidental – predominantemente representacional –, como também desenvolver sua própria filosofia da diferença, profundamente influenciada pela crítica e pelo perspectivismo nietzschianos. 

A cultura ocidental se fez e ainda se faz pelo querer ou desejo de encontrar ou constituir para si conhecimentos, mas não qualquer conhecimento. Buscam-se conhecimentos que sejam verdadeiros, e nesta caminhada uma das principais questões, senão a principal, diz respeito às concepções que o sujeito cria para si ao obter ou constituir seus conhecimentos. As buscas e seus resultados sempre foram colocados em termos de adequação, descoberta ou desvelamento de algo que seria a realidade. Já no que diz respeito ao sujeito, as ideias sempre foram pensadas em termos de cópias ou representações de algo ou de alguém. Nietzsche, por seu lado, no interior desta problemática, vem introduzir os conceitos de sentido e valor, ambos relacionados aos conceitos de corpo e força como elementos que não devem ser menosprezados nesta busca do conhecimento, mas, ao contrário, devem ser privilegiados. 

Mas como Nietzsche pensa esta questão? Pensar o conceito de força para Nietzsche é, na verdade, pensar em forças. Uma força, segundo o pensador alemão, se define pelo complexo de relações que ela mantém com outras forças, e é justamente dessa interação entre diferentes forças que os mais variados corpos são produzidos. Dito de outro modo, um corpo ou um objeto nada mais é do que a expressão ou produto de um determinado conjunto de forças em um dado momento. 

Não há objeto (fenômeno) que já não seja possuído, visto que, nele mesmo, ele é, não uma aparência, mas o aparecimento de uma força. Toda força está, portanto, numa relação essencial com outra força. O ser da força é o plural; seria rigorosamente absurdo pensar a força no singular. ‘Uma força é dominação, mas é também o objeto sobre o qual uma dominação se exerce. ’(Deleuze, 1976). Neste sentido, podemos afirmar que não só o fenômeno – objeto – é força, mas também que o conhecedor, isto é, o sujeito de conhecimento, é um corpo, e como tal, produto ele também de forças. Isto significa dizer que não somente o objeto (enquanto fenômeno), como também o sujeito (enquanto corpo pensante) são antes de tudo um conjunto de forças. É exatamente este caráter criador e plural da força em Nietzsche que fará esse conceito adquirir tamanha importância na filosofia de Deleuze. Afinal, afirmar uma pluralidade de forças na constituição de um dado fenômeno – seja ele objeto ou sujeito – é, por conseguinte, afirmar a pluralidade do próprio fenômeno. Desse modo, um "mesmo" fenômeno pode apresentar diversos sentidos, dependendo das forças que estejam nele presentes bem como daquelas que se apropriam dele no momento. Aqui já vemos se desenhar a nítida correlação entre os conceitos de força e de sentido: na determinação do sentido de alguma coisa importa a determinação ou qualidade das forças que estão prevalecendo ou sobressaindo-se neste processo de determinação. 

Este modo de entender a produção de sentido de algo ou alguém nos apresenta, em verdade, a importância de outra característica fundamental da filosofia nietzschiana do conhecimento: a interpretação. Ora, se um fenômeno e sujeito são forças, a determinação do sentido de um fenômeno não está separada das forças que entram em contato com o fenômeno, produzindo-lhe um sentido, isto é, dando-lhe uma interpretação. E esta é produzida pelas forças que compõem o corpo do sujeito da interpretação. Este privilegiará uma ou algumas das forças que compõem o fenômeno, em função das forças que compõe ele próprio. Este caráter interpretativo do corpopensamento-força em Nietzsche é, com certeza, uma das ideias que maior impacto provocou no percurso filosófico de Deleuze. No entanto, ela não é uma ideia simples. Podemos dizer que todo corpo, seja ele um animal, uma planta, o homem, uma ideia, etc., ao entrar em contato com outro corpo, sempre realiza uma interpretação deste corpo em função das forças que o constituem e que o dominam naquele momento, e que possibilitam ou não o entrar – e a forma de entrar – na própria relação. Na deriva do homem em sua busca pelo conhecimento, a linguagem, isto é, a força e a organização das palavras, adquirem certa importância, a ponto de erroneamente considerarmos interpretação como interpretação linguística, oral ou escrita.” 

Para Deleuze, o pensador – quiçá todo e qualquer sujeito humano – é um atribuidor de sentido, é aquele capaz de interpretar diversos tipos de signos, algumas das diversas forças existentes em um fenômeno, com a condição que não esqueçamos que nele são as suas forças que estão a produzir o sentido. Quando algo aparece, quando algo emerge dotado de certa natureza ou identidade, esta natureza não é a da essência do objeto, e sim aquilo que emergiu do encontro e ação de determinadas forças. Jamais encontraremos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológico ou até mesmo físico) se não sabemos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou nela se exprime. Um fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mas um signo, um sintoma que encontra seu sentido numa força atual. A filosofia inteira é uma sintomatologia, uma semiologia. As ciências são um sistema sintomatológico e semiológico. (Deleuze, 1976). 

A respeito destas forças que se apropriam e fazem emergir um sentido. Sendo o fenômeno uma expressão de forças que se apropriaram de certas forças, podemos dizer que a história da humanidade é uma história dessas apropriações, dessas atribuições de sentido. Mas é possível conhecermos quais são essas forças que atribuem sentido ou, ao menos, algumas dessas forças? Nos homens, as forças em consonância com a linguagem e a vida criam valores, o que é bom ou ruim, o que é bem ou mal. Mas essas criações/nomeações dos valores expressam apenas as forças que compõem os corpos que os expressam. 

É neste sentido que Deleuze nos diz que toda interpretação, de forma geral, é uma avaliação. Mas, ao avaliar, quem avalia sempre o faz de acordo com determinados valores que já são expressões das forças que o constituem. 

Assim, avancemos mais um passo na teoria nietzschiana: vimos que as forças apresentam uma pluralidade de sentidos, mas o sentido, por sua vez, implica o conceito de valor. O pensador, o filósofo ou qualquer homem carrega consigo certos valores que determinarão o modo como ele avalia um fenômeno. A importância do valor para a crítica nietzschiana diz respeito ao fato de que esse conceito introduz na filosofia ocidental o ponto de vista diferencial por meio do qual os próprios valores serão avaliados. Isto significa dizer que os valores, eles mesmos, já são efeitos de avaliações. Só é possível atribuir valores a partir de uma avaliação, de uma determinada perspectiva. Em contrapartida, podemos nos perguntar quais as condições que produzem ou possibilitam as próprias avaliações. Será que devemos cair num círculo vicioso que afirmaria que os valores criam avaliações que pressupõem valores, etc.? Quais são então as condições que fundam os valores e as avaliações? Não existiria algo mais básico que daria alma e corpo aos valores e às avaliações? 

É por isto que Nietzsche nos fala em valores ou avaliações altas ou baixas, nobres ou mesquinhas. Não se pode separar os valores e as avaliações de um determinado modo de vida, de uma maneira de viver. Quando avalia alguma coisa, o pensador necessariamente a considera de acordo com a sua perspectiva, privilegia certas forças que, em última instância, se compõem com suas próprias forças, com a sua própria maneira de pensar. Se todo corpo é um produto de forças, é óbvio que o pensador se constitui, ele próprio, em uma pluralidade de forças dotadas de um sentido. Ao interpretar um fenômeno, é inevitável, então, que o filósofo tente se apropriar dele, conferindo-lhe um sentido ou novos sentidos. 

As avaliações, referidas a seu elemento, não são valores, mas maneiras de ser, modos de existência daqueles que julgam e avaliam, servindo precisamente de princípios para os valores em relação aos quais eles julgam. Por isso temos sempre as crenças, os sentimentos, os pensamentos que merecemos em função de nossa maneira de ser ou de nosso estilo de vida. Há coisas que só se pode dizer, sentir ou conceber, valores nos quais só se pode crer com a condição de avaliar "baixamente", de viver e pensar "baixamente". Eis o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o elemento diferencial do qual derivam o valor dos próprios valores. (Deleuze, 1976). 

Esta correlação existente entre o pensamento e a vida é outra característica inevitável e central da filosofia de Nietzsche, característica que Deleuze utilizará na composição do seu próprio sistema filosófico. Nietzsche talvez tenha sido o filósofo que melhor ressaltou a problemática existente entre pensamento e política, esta última entendida justamente enquanto afirmação de um determinado modo de vida ou de viver. É a isto que Deleuze se refere quando nos fala de um elemento diferencial do qual derivaria o valor dos valores. Este elemento não seria outra coisa senão a vida do pensador: é a vida quem avalia, em último caso, os valores. Ela é o elemento que decidirá se um determinado valor ou um determinado pensamento convém a sua afirmação ou a sua própria destruição. Assim, encontramos em "Nietzsche": 

“O filósofo do futuro é ao mesmo tempo o explorador dos velhos mundos, cumes e cavernas, e só cria à força de se lembrar de qualquer coisa que foi essencialmente esquecida. Esta qualquer coisa, segundo Nietzsche, é a unidade do pensamento e da vida. Unidade complexa: um passo para a vida, um passo para o pensamento. Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida activa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida.” (Deleuze, 2007). 

É por este motivo que Nietzsche afirmará que ele foi o único filósofo até então a conduzir uma verdadeira crítica dos valores, já que todos os projetos anteriores de crítica falharam exatamente neste aspecto, em não considerar o elemento diferencial dos valores, o seu elemento criador, isto é, a própria vida ou os modos de viver do pensador. A crítica diz respeito, então, não a uma crítica dos valores existentes: fazer uma crítica dos valores não é fazer um inventário de todos os valores, denunciando aquilo que supostamente seriam os falsos valores e exaltando os verdadeiros. Essa é a crítica comum, encontrável mesmo em toda perspectiva revolucionária: "Eu na verdade, você no erro!". 

Ao contrário, uma crítica dos valores só pode dizer respeito a uma crítica das forças que estão na origem da sua criação: de que perspectiva ou de que ponto de vista um determinado valor se apresenta como superior, quais modos de vida ou de viver permitiram a sua criação, ou ainda, de forma perspectiva, quais possibilidades de vida ele cria. É neste ponto que encontramos o limite de uma perspectiva representacional. A vida ou os modos de vida, as forças que os ensejam, são o que há de irrepresentável. A vida e o viver são inevitavelmente imanentes aos corpos/forças que compõem a própria vida/viver. A vida e o viver de um corpo jamais podem ser vistos e vividos do exterior, representacionalmente, e caso isso venha a ser feito já seria efeito de certo viver, de certo estilo de vida. E se a crítica diz respeito à criação e não à representação é justamente porque ela se refere à vida como elemento diferencial da criação de valores. 

Seguido este raciocínio, torna-se evidente que o pensamento deixa de ser na sua nascente um ato reflexivo, e nos deparamos com um tipo de conhecimento que não é reconhecimento ou representacional. Não se trata mais de reconhecer valores tidos como superiores e sim de criação e afirmação de valores, criar modos ou possibilidades de vida. Deleuze nos mostra como o problema do conhecimento em Nietzsche passa necessariamente por essa questão: em determinado momento da história do Ocidente, o conhecimento tomou a dianteira, se naturalizou, passou a ser considerado como um fim em si mesmo, subordinando assim o pensamento e a própria vida, opondo-se à própria vida e ao pensamento. Mas não qualquer conhecimento. Ou seja, em dado momento histórico, atribuíram-se ao conhecimento valores superiores à própria vida, valores que deveriam ser reconhecidos como verdades, estas, superiores à própria vida. É precisamente a isto que a crítica nietzschiana dos valores se refere: é necessário investigar qual modo de vida quer um conhecimento que seja superior a si, que atribui ao conhecimento um valor superior a ela mesma, quais forças exigem do pensamento uma atividade puramente cognitiva. 

Mas, ao realizar a crítica à busca pelo conhecimento verdadeiro – de Sócrates até Hegel – e ao modo de vida que o instituiu ou o institui, Nietzsche está trazendo para o Ocidente um novo sentido que toma para si o pensar e o próprio conhecer. 

Mas então a crítica, concebida como crítica do próprio conhecimento, não exprimiria novas forças capazes de dar outro sentido ao pensamento? Um pensamento que iria até o fim do que a vida pode um pensamento que conduziria a vida até o fim do que ela pode. Em lugar de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo da vida. Ambos iriam ao mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida. (Deleuze, 1976). 

Mas a palavra vida não nos diz muito, pois todos os seres humanos são seres vivos. Além do mais, não existe apenas um modo de vida, mas vários modos. 

O que Deleuze deseja evidenciar por meio da obra de Nietzsche é não somente o triunfo do pensamento representacional na história da cultura ocidental, mas principalmente a vida reativa que se lhe encontra associada. O pensamento deixa de ser uma força criadora para se transformar em aparelho de observar e registrar, de entranhas congeladas. Se o pensador alemão já falava em uma vitória das forças reativas e de uma vida reativa, o filósofo francês nos mostra como esse caráter reativo está correlacionado, por sua vez, a um pensamento reativo, um pensamento que esqueceu o movimento primeiro da criação, que se pauta pelo já criado e naturalizado, e que, desta forma, caracteriza-se pela busca do conhecimento do que já existe, transformando tal reconhecimento ou representação de valores em verdades consideradas superiores. Esse predomínio das forças reativas no pensar acarreta algumas consequências. Da mesma forma que as forças reativas depreciam e aniquilam a vida, separando-a daquilo que ela pode, podemos observar esse mesmo efeito no pensamento: as forças reativas subtraem as forças ativas do pensamento, separando-o assim de sua potência criadora. A atividade do pensamento se torna então predominantemente reativa, e o seu objetivo não passa agora de um desejo de reconhecimento.” 

Minhas considerações: 

O pensamento nietzschiano no que toca a sua extemporaneidade mais singular visa nos aproximar da realidade orgânica e sua vital potência, sem a necessidade dos demais artifícios e ideais ascéticos considerando estes como sendo sintomas castradores e niveladores. Um escape do rebanho uniforme desertificado, fuga de um solo onde a estrela bailarina de Nietzsche jamais poderia brotar e então o reencontro com nossos próprios instintos e afetos singulares através dos quais, agora sim, dada a tensão entre o apolíneo e o dionisíaco, a arte criadora terá sua nova oportunidade para amar o real como ele se apresenta. 


sexta-feira, 7 de abril de 2017

"TOSQUEIRA" 13: A hipótese do "terceiro observador" na física newtoniana: Um Dasein privilegiado?

Eric Ewans Mendes

Introdução:

Nessa “tosqueira” que apresentarei, tenho por objetivo tentar trabalhar a hipótese do “terceiro observador”, levantada pelo Professor Walter em uma aula de mestrado por meio de uma breve apresentação do conceito de espaço e tempo na física e na filosofia heideggeriana. Algumas perguntas são importantes: É possível uma aproximação do conceito heideggeriano de tempo e espaço com a física? Assim como ocorre variação de medição no tempo conceituado pela física, também ocorre no tempo conceituado por Heidegger? O que significa o “terceiro observador”? Essa hipótese possui um caráter teológico? 

1. Conceito de tempo e espaço na física e na filosofia heideggeriana:

Nesta primeira parte, apresentaremos os conceitos de espaço e de tempo, de maneira breve e simples, tanto na física quanto na filosofia heideggeriana. Vejamos primeiro na física:

Espaço – o conceito de espaço que mencionaremos aqui é este: Espaço é a localização de um determinado objeto em certo momento em relação a um determinado referencial. 

Tempo – no conceito clássico (newtoniano), o tempo é absoluto e uniforme, isto é, existe independentemente da matéria e do espaço; isto porque, em qualquer ocasião, transcorre da mesma forma, não sendo mais depressa ou devagar em função de qualquer fenômeno físico que ocorra. Em relação a dois eventos simultâneos, o tempo será absoluto para ambos os observadores inerciais. Contudo, vale lembrar que, dependendo das velocidades envolvidas no movimento, e das dimensões reais dos corpo que se movimentam, os conceitos de tempo podem variar. 

Agora veremos de maneira “tosca” como a filosofia heideggeriana define esses dois conceitos:

Espaço – O conceito de espaço heideggeriano é muito extenso para o discutirmos aqui. Por isso, tentaremos resumir esse conceito de uma maneira possivelmente satisfatória. Porém se tal definição ficou satisfatória ou não, deixarei ao julgamento dos leitores. Além do conceito de espaço, precisamos também entender o que é espacialidade. É lógico que, tratando-se de Heidegger, esses conceitos são de caráter existencial e tem como ponto de partida o ente que é conhecido como ser-o-aí ou Dasein.¹ Mas, o que significa ambos então para Heidegger? Espacialidade deve ser concebido a partir do Dasein, do seu modo-de-ser. Espacialidade é algo constitutivo do Dasein que possui duas características determinantes – o des-afastamento (que significa fazer desaparecer o que está afastado, revelando-o), e o direcionamento (é a abertura das regiões – é mais que “na direção para”, mas é também “na vizinhança de algo que está nessa direção” - empregadas no ver-ao-redor, indicando aonde algo pertence, para onde vai, de onde é trazido e onde é buscado em seu mundo-ambiente). O espaço só pode ser concebido, segundo Heidegger, com o fenômeno de mundo, e mundo é entendido como contexto referencial de significados e também o ambiente que o Dasein entende a si próprio. Isso é de caráter existencial. Um exemplo: Uma viagem de “meia hora” não são 30 minutos cronológicos, mas a duração, no sentido kairológico do afastar-se de um ponto e, no direcionamento, des-afastar-se de outro em uma certa região. Esse conceito pode ser usado nos estudos exatos e científicos? Heidegger diz que sim, no uso da espacialidade como temática nas tarefas de cálculo e medição como a agrimensura. 

Tempo – Sobre o tempo, Heidegger afirma que ele é o horizonte que leva à possibilidade de entendimento-do-ser de forma geral. Sabemos que assim como o espaço o tempo também é interpretado a partir da investigação do Dasein. Primeiramente que o conceito de tempo em Heidegger é kairológico (kairós) e não cronológico (chronos), pois o Dasein é um ente existencial e seu tempo é observado existencialmente; disto decorre que o Dasein possui a sua temporalidade (Zeitlichkeit). Em sua relação com o espaço, a temporalidade do Dasein é constituída com o des-afastamento e o direcionamento. Essa temporalidade é o sentido-de-cuidado (cuidado juntamente com ocupação e solicitude apresentam o comportamento do Dasein no mundo) em que a constituição do Dasein e sobre o seu fundamento que é possível esse ente ser ontologicamente o que é. Assim o Dasein, em seu sentido-de-ser, é temporalidade; e essa temporalidade aponta a sua cotidianidade que é um determinado como da existência que predomina durante o “seu tempo de vida”. Em outras palavras, é como o Dasein “vive no dia-a-dia.” No exemplo acima da viagem de 30 minutos, esses trinta minutos apresentam uma vivência cotidiana que se dá no deslocamento de um lugar para o outro. 

2. A ilustração dos dois aviões e dos observadores:

Passemos após as conceituações para a nossa ilustração. Tome por imagética dois aviões que saem de aeroportos diferentes de uma mesma cidade às 09h e nenhum minuto a mais. Levemos em conta que os destinos de cada aeronave possuem distâncias iguais ao seu ponto de origem. Também levemos em conta que os aviões são do mesmo modelo, e estão com a mesma quantidade de pessoas. E consideremos que os aviões estão em uma velocidade média de 801,01 km/h, o primeiro, e 600 km/h, o segundo avião, ambos voando em um céu limpo e sem problemas de turbulências. Vale lembrar que em cada aeroporto há um observador inercial que está com um relógio aguardando os respectivos aviões pousarem e, assim, marcam a que horas cada aeronave chegará ao seu destino. Para ilustrar isso melhor, usaremos o sistema de coordenadas cartesiano:


Conforme se mostra na ilustração acima, ambos os aviões saíram no mesmo horário de seus destinos e percorrem a mesma distância do seu ponto de saída até os observadores (600km). Porém é visível a pequena diferença de velocidade entre os dois. O primeiro avião que chegará ao observador A’ está 0,01km/h mais rápido que o outro avião. Quando o primeiro avião chega, o observador constata que ele chega aproximadamente às 09h44min. O segundo avião, por sua vez, chega um minuto após o primeiro e o observador B’ vê que o avião chega quando o seu relógio indica, de forma aproximada, 09h45min. Assim, conclui-se que os fenômenos não foram simultâneos, pois houve variação no tempo medido (chronológico) por cada observador, resultado das diferenças de velocidade dos aviões.

E pela perspectiva heideggeriana? Se interpretarmos os fenômenos conforme o pensamento de Heidegger, a resposta é: os dois fenômenos são simultâneos. Por quê? Porque para Heidegger, conforme definimos anteriormente, “tempo” ou melhor, “temporalidade” (Zeitlichkeit) no afastar dos aviões de seus respectivos pontos de partida e o des-afastar dos observadores direcionando-se aos pontos de chegada é de caráter existencial (kairológico – kairós), e não cronológico, como é visto na física. Em outras palavras, os dois fenômenos são simultâneos existencialmente, pois chegaram ao seu destino no momento oportuno, isto é, no momento em que deveriam chegar, não afetando os entes observadores, os entes passageiros e os pilotos de cada aeronave em todos os aspectos. Em outras palavras, a diferença de velocidade das aeronaves não gera variação no tempo existencial (kairológico). 

Porém, cada observador só tem conhecimento do ambiente em que se encontra: o observador “A” tem apenas a compreensão do que se passa em seu mundo-ambiente e, do mesmo modo, o observador “B” fenomenicamente só vê o que se passa em seu mundo-ambiente, o que mostra que nenhum observador conhece além do ambiente que lhe é próprio. Então, quem é que dá o veredito de que os eventos marcados acontecidos em “A” e “B” foram simultâneos ou não? Para responder a essa pergunta, surge a hipótese do “terceiro observador”. 

3. A hipótese do “terceiro observador” ou “Dasein privilegiado” 

Essa hipótese² é justamente fruto do questionamento feito no tópico anterior. Como os observadores “A” e “B” não podem dar o veredito sobre os fenômenos como simultâneos ou não, isso significa que se existe um veredito é porque há um observador externo, em uma posição privilegiada aos dois outros, o qual tem a possibilidade de concluir sobre os dois eventos se porventura ambos foram simultâneos ou não. Como poderíamos entender imageticamente a posição desse “terceiro observador”? Retomando ao gráfico do tópico anterior, pelo qual vimos os fenômenos observados por “A” e “B”, agora notaremos que haverá um acréscimo na imagética, que é a posição do “terceiro observador”. Vejamos o gráfico:


Veja que a posição do “terceiro observador” se encontra fora dos eixos do plano cartesiano, o que lhe permite ter uma visão superior dos fenômenos em relação aos observadores inerciais que se encontram inseridos nos ambientes dos eventos e, portanto, esta posição “de fora” lhe permite estudar e concluir se os fenômenos do pouso dos aviões foram simultâneos ou não. Isso indica que o “terceiro observador” é hipoteticamente necessário para que se conclua a observação dos fenômenos.

Mas quem é o “terceiro observador” na ciência? A própria ciência como linguagem, e esta linguagem se substancializa na figura do cientista que levanta as suas hipóteses e opera matematicamente para relacionar os observadores. E olhando pela perspectiva heideggeriana, quem seria o terceiro observador? 

Pelo pensamento de Heidegger, podemos inferir que tal observador é um Dasein-em-posição-privilegiada, isto é, ele transcendeu os outros dois observadores pela linguagem e, por essa mesma linguagem, des-oculta os mundos-ambientes dos dois observadores por meio do logos, interpretando a relação deles com os demais entes em seus respectivos mundos e como eles se comportam nesse mundo. 

4. Essa hipótese pode ser considerada também uma linguagem teológica?³

Conforme a pergunta do título, podemos entender que essa hipótese é, também assim como a temporalidade em Heidegger, uma linguagem teológica? A temporalidade em Heidegger é uma linguagem teológica retirada dos Evangelhos, pois tempo para Heidegger, como vimos, é kairós, e não chronos. A mensagem cristã é: que a salvação deve ser abraçada antes da morte que pode vir a qualquer momento. Paulo também utiliza kairós para tratar do tempo ou momento oportuno, um termo importante na analítica do Dasein de Heidegger. 

Na questão da hipótese do terceiro observador, podemos afirmar que sim, ela é uma linguagem teológica. Numa perspectiva judaico-cristã, podemos notar passagens que Deus age como o “terceiro observador”: em Gênesis na narrativa da Criação, quando após ter criado todo o universo e o homem, vê a sua Criação e a considera “muito boa” (Gn 1.31), no episódio da Torre de Babel também em Gênesis (Gn 10), ao ver o sofrimento do povo e acompanhar no cativeiro e o seu comportamento após a saída do Egito em Êxodo (Êx 3), nos Salmos onde Deus é aquele que se inclina para observar a sua criação (Sl 113.5, 6). Nos Evangelhos quando Jesus fala que se um irmão pecar contra ti leve duas ou três testemunhas após falar com ele a sós (Mt 18.15-20), na sua paixão na cruz (Mt 27, Mc 15, Lc 23, Jo 19), são alguns exemplos. 

É claro que isso pode ser aplicado em outras religiões e filosofias, como no Islamismo, no Budismo, no panteão grego dos deuses que observavam os comportamentos humanos e manifestavam-se próximos aos humanos assumindo outra fisionomia, na religião nórdica, etc. Mas, como cristão que sou, reforço a perspectiva cristã de Deus como o “terceiro observador” juntamente com o Filho e o Espírito Santo, isto é, a Santíssima Trindade. É claro que devemos levar em conta que se entendermos pela filosofia de Heidegger, Deus não é um Dasein privilegiado, pois Dasein são os entes que se encontram no mundo, e Deus transcende este mundo; e sua observação é infinitamente superior à do Dasein. Enquanto o Dasein domina a linguagem, Deus é o Senhor de todas as linguagens. Mas isso não impede de usarmos o pensamento heideggeriano. Podemos utilizá-lo. O que ocorrerá é a mudança dos termos em relação a Deus como “terceiro observador”: Deus não é um Dasein-em-posição-privilegiada, mas é o que eu chamaria de O-Divino-Criador-e-Observador-do-mundo. 

Conclusões:

Mediante o que apresentei nas seções anteriores dessa “tosqueira”, apresento as seguintes conclusões: primeiro, que existe sim a possibilidade de aproximação do pensamento heideggeriano com a física, pois o próprio Heidegger deixa claro que o seu conceito de tempo e espaço podem ser temáticas no exercício das disciplinas que costumam ser denominadas “exatas”. Em segundo lugar, vimos que os dois eventos apresentados na ilustração acima podem ser concluídos de maneiras diferentes. Se for pelo viés da física, os dois fenômenos não ocorreram simultaneamente, pois há entre variação na medição de tempo (sentido cronológico) devido as diferenças de velocidade das aeronaves. Já pela perspectiva de Heidegger, os eventos são simultâneos, pois não ocorre variação no tempo existencial, o que indica que dependendo da forma como se interpreta o fenômeno, o veredito pode mudar. Terceiro, quem determina o modo de interpretação e dá o veredito é o “terceiro observador”, que está em uma posição privilegiada à dos observadores inerciais. Esse “terceiro observador” é, à luz do pensamento de Heidegger, o que podemos chamar de Dasein-em-posição-privilegiada que transcende os outros dois observadores pela linguagem. Finalmente, atrevo-me a dizer que essa hipótese do “terceiro observador” é também de caráter teológico, pois há passagens bíblicas que dão a entender Deus como o “terceiro observador”. É evidente que no caso de Deus, como tal observador, a situação ontológica é diferente daquela que se percebe quando homem é o terceiro observador. Ele, Deus, é o Observador Supremo, o Senhor da linguagem. Portanto, com base no pensamento heideggeriano, infiro que Deus é O-Divino-Criador-e-Observador-do-mundo. 


NOTAS TOSCAS:

[1] É importante explicar que Dasein é a combinação feita por Heidegger (na sua obra mais importante Ser e Tempo) do artigo neutro das (o) + o verbo sein (ser), que pode ser traduzido como ser-o-aí. Heidegger em sua filosofia busca refazer a pergunta pelo sentido do ser, “o que é o ser?”, que, segundo ele, não foi respondida adequadamente pela tradição filosófica pelo fato da pergunta pelo sentido do ser não ter sido analisada de maneira mais profunda. Assim Heidegger afirma que é importante refazer essa pergunta e essa investigação parte de um ente que compreende a sua própria existência na história chamado de Dasein, isto é, o homem (ser humano) que compreende a sua existência não categoricamente como na tradição filosófica, mas que quando responde a pergunta: “Quem é você?” diz: “Sou filho(a) de João e Maria, nasci em Cuiabá, etc.” É a partir desse ente que é existência (aí Heidegger ser também chamado de Existencialista) Heidegger procura trabalhar a investigação acerca do ser. Na verdade a filosofia do Heidegger é uma analítica do Dasein e sua tarefa é em primeiro lugar ontológica. Márcia Schuback traduz Dasein como pre-sença, entendendo que como o Dasein é presença (parousia e ousia) em sua temporalidade e historicidade, ela optou por essa tradução. Porém, concordo com Castilho em partes (já que aparece em sua tradução de Ser e Tempo - ser-aí), prefiro usar o termo no alemão. E por que Heidegger não usa o termo homem? Porque, segundo ele, esse termo está carregado de categorizações da tradição, ocultando assim o ser desse ente. Heidegger não despreza o termo (tanto é que ele aparece em Ser e Tempo e em outras obras) mas, usa o Dasein por considerar mais adequado a sua tarefa ontológica. 

[2] Vale lembrar que essa hipótese surgiu durante a aula do mestrado “Tópicos Essenciais em Filosofia e Física” ministrada pelo Walter, na qual ele mencionou que, no exemplo dos observadores dentro do trem em movimento e outro fora, não são tais observadores que dão o veredito sobre o fenômeno, no que diz respeito às transformações de Lorentz que envolvem as medias feitas por tais observadores. Então, quem será? 

[3] Sugiro a releitura da tosqueira do Walter – 10: A palavra infinita que criou o universo.


quinta-feira, 2 de março de 2017

"TOSQUEIRA" 11: Lógica e Ética: Inseparabilidade ou Divisibilidade Estrutural?

Bhryan Vinicius Da Vinsi

Neste pequeno texto, trataremos dos processos de argumentação em duas grandes áreas da Filosofia: Lógica e Ética e suas características estruturais. Primeiro, através de uma pequena diferenciação dos processos argumentativos de ambas e, posteriormente, apontando suas diferentes finalidades e desenvolvimentos teóricos. 

Ainda que o conceito de argumentação pareça claro, devemos caracterizar primeiro de forma geral o que é o processo de argumentação. 

Sendo assim, a argumentação segue um processo de inferência básico, passando de premissas – antecedentes – para conclusões – consequentes -. Tal processo foi herdado da lógica tradicional, embora alguns também afirmem que é apenas uma sofisticação do lógos grego. 

A verificação desse processo de passagem das premissas para as conclusões é feita através de critérios estabelecidos e intersubjetivos. A aceitação do valor de verdade das proposições, premissas ou conclusões, também é intersubjetiva. 
                                                                                                   




Para facilitar o estudo e a realização desse processo de pesquisa seguiremos o processo mais simples de argumentação: duas premissas e uma conclusão e aceitaremos que o valor de verdade é VERDADEIRO sem atentar à justificação das proposições. 


Argumentação Lógica e Argumentação Ética 

Como já dito anteriormente, uma argumentação passa por relações entre proposições que podem constituir raciocínios, e neles serem explícitas crenças em atitudes proposicionais de conhecimento. Tais crenças podendo afirmar descritivamente um estado de coisas ou uma justificação do conhecimento sobre algum fato. Na lógica o processo leva a um conteúdo descritivo ou teórico, conceitual, já na ética leva a um conteúdo prático. 

Ao tecer proposições declarativas, ou seja, que definem caracteristicamente algo, é utilizado um conhecimento previamente justificado por outras proposições que interligadas geram um sistema de crenças da pessoa que o fez. Tal processo de interligação pode ser colocado, ao menos parcialmente, em formatos lógicos nos quais a justificação das proposições nos mostra se a proposição argumentativa é válida ou não. 

Já nas proposições éticas há outro fator determinante para a construção de uma proposição: o conteúdo da proposição afirmante em conexão ao que é afirmado por uma moral ou teoria ética. Com esse fator, uma proposição ética pode possuir outros fatores determinantes no processo de argumentação que não sejam as premissas e a conclusão, podendo dar novos rumos e transformar o que era uma proposição argumentativa em proposição prescritiva, imperativa, etc. Uma proposição ética prescritiva estará vinculada a concepções éticas que possuem dogmatismos, costumes, filiações religiosas, etc. Uma proposição ética imperativa vem acrescida de verbos no imperativo: “faça”, “aja”, “seja”, etc. Por essas características, as ignoraremos aqui, já que tal sentido imperativo retira totalmente da proposição as premissas e conclusões, dando a ela um caráter de regra estruturalmente incontestável dado que com premissas verdadeiras, a conclusão é obrigatoriamente verdadeira.

Mesmo as proposições éticas prescritivas podem mostrar encadeamentos argumentativos que não seguem as regras de inferência estabelecidas pela lógica e é isso que difere proposições éticas de proposições de fundo teórico, que seguem formas declarativas e tem características veritativas, ou seja, tem valoração de verdade. 

Proposições éticas dependem de fundos filosóficos antecedentes, sendo eles parte de filosofias morais ou teorias éticas. 

Tais fundos éticos, sejam eles morais ou teorias éticas, são elementos adicionais no processo de inferência argumentativa e podem obrigar o aumento da concepção argumentativa, gerando um “além de...” a frente dos conhecimentos teóricos. Diante do processo de inferência, “ir além de” pode gerar uma nova etapa argumentativa que não faz parte da relação encadeada entre proposições e conclusões definida pelo princípio básico da lógica. Este aumento traria a teoria ética para a posição de anterior ao processo de inferência das proposições e abrangeria todo o conjunto do argumento. Com isso, a conclusão seria apresentada como uma proposição ética prescritiva, e nela, a relação de causalidade entre as premissas e a conclusão estaria sob moldes diferentes do princípio básico da lógica, afinal, a proposição da conclusão se deu de forma diferente, sendo de fundo prático e não teórico ou descritivo. 

Uma proposição prática, ao inserir a ética no processo de inferência argumentativa estabelece uma condicionalidade de agir prático, gerando causalidade prática. Tal causalidade prática transforma a conclusão numa ação que DEVE ser feita, sustentada pela condicionalidade e a determinação de compromisso para com a ação. Esse compromisso remeterá à moral ou à teoria ética, ligado pela – novamente – condicionalidade e causalidade prática inserida nas premissas. É possível também que que a teoria ética não participe do processo antecedente de inferência, e ainda assim, interfira no consequente por fundamentos de filosofia moral ou teoria ética, ainda que de forma implícita. 

Há dois exemplos que podem ser utilizados para ilustrar tais processos de inferência sob influência da ética: 

EXEMPLO 1:

Premissa A1 – Uma proposição sobre fatos (de caráter descritivo, sendo factual ou teórico): No transporte público acaba de entrar uma gestante que necessita de assento para sua segurança. 

Premissa B1 – Uma proposição sobre fatos: Eu estou em boas condições físicas para permanecer de pé. 

Conclusão C1 – Uma proposição ética (não tem caráter descritivo, factual ou teórico, mas fundo prático): Eu devo levantar-me e oferecer à gestante o assento. 

Neste exemplo, é claro o funcionamento do processo argumentativo onde a ética não participa – inicialmente – do processo de inferência, mas interfere na conclusão alcançada pelo processo. 

Embora implícito, no exemplo foi usado como parâmetro ético o Imperativo Categórico, de Kant, ainda que sua discussão ética não tenha sido apresentada e nem mesmo seja o foco desse texto. O próximo exemplo talvez ilustre ainda mais a influência ética e a desestruturação do processo lógico de inferência causado por ela ao explicitar o Imperativo Categórico em forma de Antecedente ético no processo de inferência. 

EXEMPLO 2:

Premissa A2 – Uma proposição ética: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal”. 

Premissa B2 – Uma proposição sobre fatos: há uma gestante precisando de assento no transporte público e eu tenho boas condições físicas para permanecer de pé (uma proposição composta, aliás, pois depende do conectivo E para sua estruturação). 

Conclusão C2 – Uma proposição ética: Eu devo levantar-me e oferecer à gestante o assento. 

Neste segundo exemplo é explícita a influência da ética nas proposições que fazem parte do processo de inferência e determinam, por condição, a conclusão. 

Com estes dois exemplos, é claro o conceito de argumentação lógica na ética defendido por aqueles que consideram ambas áreas filosóficas como inseparáveis. 

Ao análisar de forma lógica os dois exemplos propostos para averiguar a validade do argumento e ignorar os seus conteúdos práticos, visualizamos de forma clara as pressões entre ética e lógica. No primeiro exemplo, a inferência exige a verdade da conclusão. Com isso, a lógica força a validade da conclusão como verdadeira. No segundo exemplo, a ética participa das premissas e, embora não haja força da lógica na conclusão, a ética nos força a abrandar o método de inferência ao aceitar uma proposição prática (não teórica, factual ou descritiva) como premissa lógica. Dessa forma, ao analisarmos de maneira prática (através de uma lente ética ou moral), temos um paradoxo: apenas a conclusão passa a ser prática, pois sustentada por uma filosofia moral ou ética, a primeira premissa ( Premissa A2 – Uma proposição ética: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal”.) passa a ser teórica e com isso, não prática, alterando todo o processo de inferência e seguindo outros caminhos que não os da lógica para o processo de inferência. 


Objetividade: Virtude ou Ingenuidade? 

Alguns teóricos da ética defendem a ideia de que a lógica e a ética são “aliadas” inseparáveis, com diversos argumentos para justificar tal consideração. Um deles, John Corcoran, utiliza o conceito de Objetividade da lógica para tal. Após analisar alguns trechos do que ele afirma, ilustraremos exemplos de seus processos de inferência. 

Ele diz: “A objetividade envolve o que tem sido chamado de amor pela verdade, devoção à verdade, lealdade à verdade. Isso é reconhecido como um traço caracteristicamente humano que serve para unificar a raça humana. É ao mesmo tempo uma virtude ética que requer cultivo. O objetivo primário da lógica é o cultivo da objetividade. A lógica visa conceitos, princípios e métodos que são úteis para fazer com que a mente de alguém se acomode aos fatos.”

É possível observar, na breve definição acima de objetividade, que Corcoran considera a objetividade como uma virtude ética a ser cultivada. Partindo, novamente, para um processo de inferência ilustrativo, não será difícil observar uma alteração estrutural no processo lógico para tal afirmação.

Corcoran diz ainda: “É possível cooperar no objetivo, ao mesmo tempo nobre e prático, para superar a ignorância e a falibilidade tanto quanto possível. A objetividade automaticamente envolve cooperação e prevenção de enganos, sejam enganos de outros ou por outros, ou mesmo o autoengano.” 

É observável neste caso, outra interferência de uma filosofia ética ou moral no processo de argumentação, e ilustraremos isso em breve. Vemos agora que Corcoran trata a objetividade como uma Máxima universal que é, depois de cultivada, aplicada cooperativamente, num sentido de unidade moral. Temos, nesse caso, um princípio lógico transformado em um “idealismo” de fundo prático. Corcoran vai além: “Em muitos casos, a compaixão e a objetividade reforçam-se mutuamente. A compaixão não apenas não exclui, mas efetivamente exige a objetividade, e esse não é um caso isolado. Todas as virtudes são compatíveis com a objetividade, e a maioria delas, senão todas, exigem-na a fim de serem eficazes e benéficas.” 

Nesse caso, há um problema estrutural no argumento. Corcoran coloca a objetividade como um consequente da virtude, ao passo em que na verdade ela é, dentro desse completo processo argumentativo, um antecedente. 

Ainda sobre a Objetividade, de modo isolado, ela nada tem a ver com virtudes, unidades éticas ou morais. Um argumentador, pesquisador ou curioso pode a utilizar pelos mais diversos interesses próprios e desconhecidos, e a Objetividade ainda será apenas uma ferramenta processual, ao passo em que delimita os passos na busca de um ou vários objetivos, sejam eles quais forem. 

Vamos agora à ilustração pontual dos argumentos de Corcoran e apontar, dentro de sua estrutura, as alterações na estrutura do processo argumentativo que causam a sua desconexão estrutural da lógica, ainda que se dê por um processo derivado da lógica. 

Exemplos:

Premissa X1 – Uma proposição prática: “Devemos agir de forma objetiva para alcançar unidade.”

Premissa Y1 – Uma proposição prática: “Devemos agir de forma unificada em busca da verdade.” 

Conclusão Z1 – Uma proposição prática: “Devemos agir em compromisso com a objetividade na busca pela verdade.”

Ora, é perceptível a interferência de uma filosofia ética ou moral nesse processo de inferência. Em momento algum as premissas foram descritivas, não apontaram características predominantes em algo ou fatores que pudessem influenciar no processo de inferência. Todo processo se deu através do Imperativo: “aja”, “deve”, além de firmar um compromisso do consequente para com o antecedente. Lembrando que aos moldes da lógica clássica, proposicional, não são válidos termos imperativos, já que nesse caso não há inferência. 

Premissa X2 – Uma proposição descritiva: “É possível superar a ignorância e o erro através da objetividade.” 

Premissa Y2 – Uma proposição descritiva: “Agir com objetividade implica em cooperação.” 

Conclusão Z2 – Uma proposição prática: “Devemos agir com objetividade para superar a ignorância e o erro.”

Vejamos: além de considerar que há uma intenção prévia – baseada em preceitos morais ou éticos, fundamentados pela primeira conclusão, dos exemplos 1 –, há ainda um erro estrutural no argumento, já que a conclusão, através das premissas 2, só se adequa aos moldes de inferência lógica após o processo de inferência do exemplo 1. De maneira isolada, apenas incorreria ao mesmo erro estrutural do primeiro exemplo, ao permitir que um fundo prático interfira no processo inferencial. 


Considerações Finais 

Ainda que a Lógica possa ser utilizada num processo inferencial de discussão ética, para a estruturação de argumentos éticos previamente isolados, e sendo útil no auxílio da manutenção estrutural, defender a Inseparabilidade de ambas é um inocente erro. Ao aumentar a abrangência do processo racional lógico de modo que a ética esteja inserida, alteramos o sistema natural de inferência e deixamos de praticar a lógica para praticar uma “ética prescritiva”. A lógica será sempre uma ferramenta independente e antecedente à ética, nunca uma ferramenta consequente e embora produzam juntas – ética e lógica –, material para muito tempo de conjectura, é apenas enquanto isoladas que alcançam seu potencial teórico e prático. Mantê-las inseparáveis causaria um erro estrutural fadado a atingir um paradoxo infinito, destruindo a capacidade lógica de inferência e delimitando o processo natural de pesquisa, gradualmente resultando na inteligibilidade até mesmo da Objetividade ética proposta anteriormente.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

"TOSQUEIRA" 10: A palavra infinita que criou o universo.

Walter Gomide

Com a palavra, Deus criou o mundo e instituiu a distinção entre transcendência e imanência. Como se deu isto? Nenhuma resposta educada e bem fundamentada pode ser dada a esta questão, mas uma “tosqueira” pode – e deve – oferecer uma “imagem lógica” deste processo.

E é com tal propósito que escrevo esta décima edição da “tosqueira”: oferecer uma possível imagem – que, como tal, namora com o universo da contradição – de como o Mundo veio da Palavra. Não pretendo aqui, humildemente, considerar de forma exaustiva todos os passos da criação do mundo, nem mesmo estou preocupado com os últimos resultados da cosmologia: estes nada me diriam, posto que o que eu quero é ilustrar “a primeira aparição fenomenológica” de um “lógos” que se reconhece como criador do mundo, e não descrever de forma esquemática a passagem da palavra divina à sua aparição como universo físico observável – talvez, daqui a uns dez anos, isto seja possível, mas por enquanto é pura precipitação....

Comecemos, então, com a tese de que Deus “separou” em sua mente infinita uma quantidade infinita de môndas criadas por ele mesmo: em Deus, basta pensar em algo para que este algo seja; a distinção entre sentido e referência, para Deus, é ausente de significado. 

O postulado acima, a tese de que Deus separou ou criou uma quantidade infinita de mônadas, será chamada de TESE LEIBNIZIANA – sem referências bibliográficas quanto à razão do nome da tese: tudo “tosco”. Adicionemos a esta tese, a restrição de que a infinitude em questão é do tamanho dos números naturais, isto é, a cardinalidade deste conjunto de mônadas, que chamarei de $M$, é igual a $\aleph_{0}$, o menor cardinal transfinito existente. A tese leibniziana, uma vez acrescida desta restrição quanto ao tamanho do infinito monadológico, será chamada de POSTULADO CANTOR-LEIBNIZ – tenho minhas razões para esta denominação e não as darei aqui, porque julgo irrelevante tal informação – é muita educação estilística para uma “tosqueira”. 

Assim, Deus “separou” em seu intelecto o conjunto $M$, mas não só isto: ao mesmo tempo em que Deus separa em seus pensamentos a coleção $M$, Ele “nomeia” todos os elementos de $M$, distinguindo-se deles na qualidade de “Criador”: cada mônada de $M$ aparece ao intelecto de Deus como “criatura nomeada”. Os nomes destas mônadas são constantes lógicas indexadas com a sequência dos números naturais. Deste modo, o conjunto $M$ pode ser considerado como exaustivamente conhecido por Deus, uma vez que Ele sabe a posição, por meio de “pronomes demonstrativos”, de cada mônada em $M$. O mais próximo que nós, meros humanos, podemos nos aproximar disto é através da listagem dos elementos de $M$:

$M = \{m_{1}, m_{2}, m_{3}, ...\}$

Temos, então, que cada mônada é nomeada por Deus através de uma constante indexada por um número natural, e tal postulado que afirma que Deus conta ou nomeia os pontos originários do universo - as mônadas -, através dos números, também se encontra em Cantor, o domesticador do infinito. 

Mas a consciência que Deus tem de que Ele é o criador de todos os elementos de $M$ pressupõe que Deus dê um nome a si, e este nome é $m_{\omega}$, em que o subíndice $\omega$ indica o primeiro ordinal transfinito de Cantor, um número inacessível por meio de qualquer procedimento, de sintaxe finita, realizado com os números naturais.

Como Criador das mônadas, Deus coloca diante de si, através de seu intelecto, a intuição imediata das seguintes proposições:

1) $m_{\omega}$ criou $m_{1}$ - em símbolos ordinários da lógica de primeira ordem, tal enunciado é representado por $C (m_{\omega}, m_{1})$, em que $C (x, y)$ é o predicado diádico "$x$ cria $y$";

2) $m_{\omega}$ criou $m_{2}$ - em símbolos, $C (m_{\omega}, m_{2})$;

3) $m_{\omega}$ criou $m_{3}$ - em símbolos, $C (m_{\omega}, m_{2})$;
.
.
.
k) $m_{\omega}$ criou $m_{k}$ - em símbolos, $C (m_{\omega}, m_{k})$.
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.
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A conjunção de todas as proposições acima listadas se dá imediatamente no intelecto de Deus, e é neste momento, em que Deus se intui intelectualmente como o criador de todas as mônadas, que o LÓGOS divino “aparece” como princípio ordenador do mundo. O mais próximo que podemos chegar da intuição divina que instaura o lógos é através da expressão da conjunção infinita acima mostrada por meio de uma única expressão, sinteticamente intuída pelo nosso intelecto. Consegue-se isto através do operador infinitário de conjunção, presente em linguagens infinitárias, por exemplo, do tipo $L (\omega_{1}, \omega)$, o que nos dá a expressão que segue:

$\wedge_{\hspace{1mm} i \hspace{1mm} \in \hspace{1mm} \omega} \hspace{1mm} C \hspace{1mm} (m_{\omega}, \hspace{1mm} m_{i})$

A expressão acima, que será chamada de PRINCÍPIO DE SURGIMENTO DO LÓGOS – ou, mais simplesmente, $PSL$ – é a maneira de dizer, em linguagem infinitária, a conjunção de todas as proposições listadas acima de 1) até k ) e estendendo-se potencialmente até o infinito.



Desta forma, postulo aqui que $PSL$, quando presente no intelecto de Deus, determina a aparição do lógos divino, e a distinção entre imanência e transcendência se estabelece. 

Da mesma forma, as mônadas criadas, através de $PSL$, reconhecem-se como “criaturas”. Isto porque a relação $C \hspace{1mm} (x, y)$  - “x cria y” – admite a forma passiva “y é criado por x”, forma esta que será representada simbolicamente por $C^{-1} \hspace{1mm} (y, x)$. Mas, desta maneira, $C^{-1} \hspace{1mm} (y, x)$ é uma função constante que, para cada mônada $m_{\hspace{1mm} i \hspace{1mm} \in \hspace{1mm} \omega}$, associa a mônada criadora $m_{\omega}$ que é o “nome que Deus dá a si mesmo”. A representação desta relação funcional entre o conjunto $M$ das mônadas e Deus, a mônada $m_{\omega}$, é dada da forma seguinte:

$M \rightarrow^{C^{-1}} \hspace{2mm} \{ m_{\omega} \}$

A expressão acima (“toscamente” escrita) significa que qualquer mônada $m_{\hspace{1mm} i}$ que pertença a $M$ é associada à mônada $m_{w}$  por meio da relação (função) $C_{-1} \hspace{1mm} (y, x)$. Em português claro e simples, "$M \rightarrow^{C^{-1}} \hspace{2mm} \{ m_{\omega} \}$" significa que todas as mônadas foram criadas por Deus. 

Por tais razões, postulo que $C^{-1} \hspace{1mm} (y, x)$ é a relação de participação dos entes criados no Criador, e que é por meio de tal relação que as mônadas apercebem a Deus como suas Causas Eficiente, Formal e Final.

E tudo começa quando o intelecto de Deus põe diante de si a conjunção infinita $PSL$. A partir deste “momento da eternidade”, o Mundo se separa de Deus, e a “TRANSCENDÊNCIA COMEÇA JUNTO COM A IMANÊNCIA”.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

"TOSQUEIRA" 9: Sócrates: ignorante ou dissimulado? Mas de qual Sócrates se está mesmo a falar? Para o bem ou para o mal, já aviso, ao final da leitura, as dúvidas serão ainda maiores!

Gilbert Ronald Lopes Florêncio

Primeiro, uma brevíssima panorâmica

Sócrates $\left\{\begin{array}{ll}Sofronisco (pai) \hspace{1mm} – \hspace{1mm} escultor/talhador \hspace{1mm} de \hspace{1mm} pedras \hspace{1mm} (Eutifron 11c); \\ Fenareta \hspace{1mm} (mãe) \hspace{1mm} –  \hspace{1mm}aquela  \hspace{1mm}que \hspace{1mm} faz \hspace{1mm} aparecer \hspace{1mm} a \hspace{1mm} virtude \hspace{1mm} (Teeteto \hspace{1mm} 149a). \end{array}\right\}$


Pela tradição Xenofonte/Platão – era casado com Xantipa, com quem teve 3 filhos;

Pela tradição peripatética – era bígamo, porquanto casado com Xantipa e com Mirto (neta de Aristides o Justo).

Sócrates era feio, tal como um sileno: Teeteto 143e e Banquete II 19, v. 5-7.

àPlatão o apresenta como aluno do sofista Pródico (Protágoras 341a; Mênon 96d; Crátilo 384b).

àDiógenes Laércio – coloca Anaxágoras e Arquelau como mestres de Sócrates (Fédon 96a-99d).

  • Xenofonte – Sócrates não era pobre. Pobreza não consiste na modéstia dos meios de subsistência, mas, sobretudo, na relação deficitária do ter em relação às necessidades.                                                                      
Processo (movido por Meleto, Lícon e Ânitos) $\left\{\begin{array}{ll}1. \hspace{1mm} Não \hspace{1mm} crer \hspace{1mm} nos \hspace{1mm} deuses \hspace{1mm} da \hspace{1mm} cidade; \\ 2. \hspace{1mm} Introduzir \hspace{1mm} novas \hspace{1mm} divindades; \\ 3. \hspace{1mm} Corromper \hspace{1mm} a \hspace{1mm} juventude. \end{array}\right\}$
                                                           

* Divergência entre intérpretes $\left\{\begin{array}{ll}1. \hspace{1mm} Consideram \hspace{1mm} esses \hspace{1mm} 3 \hspace{1mm} pontos \hspace{1mm} da \hspace{1mm} acusação \hspace{1mm} como \hspace{1mm} sendo \hspace{1mm} os \hspace{1mm} verdadeiros \hspace{1mm} motivos \hspace{1mm} \\ para \hspace{1mm} o \hspace{1mm} processo; \\ 2. \hspace{1mm} Consideram \hspace{1mm} o \hspace{1mm} contrário, \hspace{1mm} que \hspace{1mm} esses \hspace{1mm} pontos \hspace{1mm} encobrem \hspace{1mm} os \hspace{1mm} principais \hspace{1mm} agravos, \hspace{1mm} \\ de \hspace{1mm} natureza \hspace{1mm} política. \end{array}\right\}$
             
1. Não crer nos deuses ou não os honrar?

Sócrates não crê nos relatos fabulosos que os poetas espalham sobre os deuses (Eutifron 6a-c; República II 377s-III 408c). Ele crê em deuses purificados de todos os vícios e de todos os defeitos que lhes atribui uma tradição poética que ele considera mentirosa. 

* Discussão sobre a possibilidade de haver, ainda em vigor, em 399 a.C., um decreto de Péricles visando reprimir a impiedade.

2. Introdução de novas divindades (daimonia)

Sócrates afirmava ouvir o seu “daimon sêmeion”. Indaga-se: Por que, então, os acusadores falam de “divindades” (daimonia) e não de uma divindade (daimonion)? 

àO emprego do plural atestaria o fato de que os acusadores partilham a opinião difundida de que Sócrates é um físico que se interessa, sobretudo, pelo estudo da natureza (physis) e que não hesita em substituir os antigos deuses por novas entidades (As Nuvens, Aristófanes).

3. Corromper a juventude

Platão subordina a alegada corrupção dos jovens à impiedade, como se Sócrates incitasse os jovens a não crerem nos deuses da cidade e a honrarem, em seu lugar, novas divindades. Tal apresentação platônica parece tratar-se de um subterfúgio para eludir a dimensão política desta acusação (Apologia 23cd).

Influência, em especial, sobre: Alcibíades, Cármides e Crítias.

Xenofonte (Memoráveis) – coloca em evidência a dimensão política do processo contra Sócrates. Em resposta ao sofista Polícrates, que escreveu um panfleto denominado “Acusação de Sócrates”, publicado alguns anos após o processo.

Acusação de Sócrates – obra de Polícrates que acusa Sócrates de: 

1. Ter sido mau gênio de Crítias e Alcibíades;
2. Ter incitado seus companheiros a desprezar as instituições democráticas, inclusive o sorteio dos juízes; 
3. Tornar-se partidário da tirania. 

No total, houve 3 ondas sucessivas de acusação: As Nuvens (Aristófanes, 423 a.C.); o processo em que Sócrates foi condenado à morte (399 a.C.) e O panfleto de Polícrates. 


Ultrapassada a Panorâmica, vamos à CONTEXTUALIZAÇÃO


Sócrates (originário do burgo de Alôpekê) é o pai da filosofia no sentido de ter sido ele o primeiro a afastar-se do estudo da natureza e insistir para que a reflexão filosófica se interessasse, daí em diante, e exclusivamente, pelas “questões humanas”. Foi o 1º a convidar a filosofia a descer do céu e a instalá-la nas cidades, introduzindo-a até nos lares, impondo-lhe o estudo da vida, dos costumes, das coisas boas e más.

àOs modernos forjaram o termo “pré-socrático” para designar os filósofos que se situam antes da “revolução” socrática e que fizeram da natureza (physis) o objeto de suas investigações, ou seja, os olhos da filosofia estavam voltados para o exterior, em busca de uma explicação razoável do espetáculo mutante da natureza que nos rodeia, Sócrates deslocou este olhar para o próprio homem com a injunção délfica “Conhece-te a ti mesmo”.

Indaga-se: Por que o homem estudou a Natureza antes de ocupar-se com o “Conhece-te a ti mesmo”? 

A fim de responder a esta indagação, mister um breve retorno à Época que se pode chamar de Pré-científica, com as seguintes características:

1. Distanciamento do ser com relação ao objeto externo: em analogia com um bebê – solipsista, que aceita, sem questionar, que seu meio ambiente é parte integrante dele, até que, de repente, surge a dúvida, pois algo deve estar errado, já que o bebê percebe que o alimento não surge mais como resposta imediata à fome, sendo preciso esforço para que o meio ambiente comporte-se conforme sua vontade. Então, 1º mês de idade, percebe que há coisas exteriores a serem aduladas ou evitadas – reconhece a mãe com um sorriso. Abre-se uma brecha entre o ser e o mundo exterior. No entanto, uma coisa é notar que há coisas externas, outra é chegar à ideia de que esses objetos possuem natureza própria, estranha à do humano, e que não existem nem simpatia nem hostilidade por suas paixões e desejos. 

2. Preocupação da inteligência com as necessidades práticas: inteligência posta a serviço de estabelecer meios para alcançar fins práticos, que não podem ser alcançados de modo imediato. Ex.: Se uma banana está ao alcance de um macaco faminto, ele a pega e come; mas, se está fora de seu alcance, talvez, em lugar mais alto, ele poderá pensar em colocar caixas para, nelas subindo, alcançar a fruta em questão. Povos primitivos ainda estão neste estágio. Melanésios, v.g., denominam mato as plantas e árvores que não lhes têm especial serventia, chamando, indiscriminadamente, de “Mauna wala” os insetos e aves sem papel no cardápio ou na tradição. 

3. Crença nos poderes invisíveis, sobrenaturais, que jazem por trás dos objetos: no exemplo acima, do macaco, pode parecer que há forças benéficas e malignas que, respectivamente, dificultam o acesso à banana e proveem as caixas para que as alcance. A mitologia atende a esta necessidade de explicação ao fabricar uma história do sobrenatural, com o efeito de fixar os poderes invisíveis sob uma forma mais definida e dotá-los de uma substância mais concreta. O conhecimento do sobrenatural, que o humano acredita possuir, não sendo extraído da experiência direta comum, parece ser um conhecimento de uma ordem diferente e superior. 

Então, eis que, com Tales de Mileto (séc. VI a.C.), nasce o que se poderia denominar de “Ciência Jônica”. O surgimento da ciência significou que a inteligência tornara-se desinteressada (com relação ao item 2 supra) e, agora, sentia-se livre para viajar pelos mares do pensamento estranhos às mentes voltadas para os problemas imediatos da ação.

Conta-se que Tales, em suas viagens, percebeu que os egípcios precisavam medir a terra devido às inundações anuais do Nilo que apagavam os marcos divisórios. Então, acabou por constatar que tinham um método para calcular áreas retangulares, o que o levou a dar-se conta de que o método poderia ser generalizado para o cálculo de áreas de qualquer formato. Nasce a geometria, vale dizer: o problema – algo a ser resolvido – cedeu lugar ao teorema – algo a ser contemplado.

Astrologia converteu-se em Astronomia: Tales previu um eclipse na Ásia Menor, em 585 a.C., o que fez pela observação dos registros dos sacerdotes da Babilônia sobre os movimentos do planetas. O pensamento grego ignorou a astrologia até a fusão entre Ocidente e Oriente, com as conquistas de Alexandre.

Portanto, a Escola de Mileto representa a infância da ciência, cujo nascimento foi marcado pela negativa tácita quanto à possibilidade de coexistência de 2 tipos de conhecimento: natural (experiência) e sobrenatural (revelação), sendo reputado conhecimento apenas o natural. 

Descobre-se a Natureza (physis), ou seja, que o mundo é natural, com comportamentos imutáveis e próprios e que podem ser determinados pela razão humana, apesar de estarem além do controle humano.

Assim, o sobrenatural, concebido pela mitologia, simplesmente desaparece.

Xenófanes: “Se os cavalos e os bois tivessem mãos e conseguissem desenhar ou fazer estátuas, os cavalos representariam os deuses sob a forma de cavalos, e os bois, sob a forma de bois.”

Não existe mais o pano de fundo sobrenatural.

O pensamento se vê confrontando a Natureza, um mundo de coisas impessoais, indiferentes aos desejos do homem e que existem por si mesmas. A cosmogonia desligou-se da teogonia. O pensamento racional dissipou a bruma do mito das origens do mundo e da vida.

Demócrito: atomismo – teoria sobre a natureza física tangível. Os atomistas afirmavam que as propriedades táteis são as únicas verdadeiras; as propriedades visuais não são substanciais ou objetivas. Não estão presentes quando não se está olhando. Átomos só apresentam forma e resistência, que são propriedades tangíveis necessárias e suficientes para mostrar que algo é real. O atomismo afirma que o real – o núcleo permanente e imutável da substância – não passa de átomos se movendo num espaço vazio.

A característica essencial deste atomismo é que se trata de uma doutrina materialista. O jogo consiste inteiramente do acaso; não há qualquer inteligência controladora por trás dele.

Importante: a ciência não chegou à conclusão de que o mundo espiritual fora erroneamente concebido, mas à de que tal mundo não existia. Nada era real além do corpo tangível composto por átomos. O resultado foi uma doutrina denominada materialismo para os filósofos e ateísmo para os religiosos.

A FILOSOFIA SOCRÁTICA FOI UMA REAÇÃO CONTRA ESTA INCLINAÇÃO MATERIALISTA. ESTA FOI A REVOLUÇÃO REALIZADA POR SÓCRATES, COM SEU “CONHEÇA-TE A TI MESMO”.

* Sócrates estava convencido de que não se pode deduzir uma ética da physis, i.e., a reflexão ética obedece às suas próprias exigências e nada tem a aprender com o estudo da natureza. 

A rejeição de Sócrates às especulações sobre a Natureza assentavam-se em dois motivos, ela era:

1. Dogmática: o produto da razão pode ser tão perigosamente falso quanto o produto da imaginação produtora de mitos. Sócrates tinha um senso do que se pode e não se pode conhecer, ante a impossibilidade de se examinarem as bases do conhecimento sobre a physis. 

2. Inútil: se não se pode conhecer os inícios da vida no passado não registrado, pode-se, no entanto, conhecer os fins da vida aqui e agora. Ademais, o passado não pode ser mudado, afigurando-se o futuro como o reino da contingência e da liberdade. 

Então, considerando o futuro e suas possibilidades, é preciso que não se viva, dia após dia, arquitetando-se meios para atingir fins estabelecidos, sem que se pergunte se vale a pena viver para atingir esses fins.

Assim, a felicidade surgiria como um fim comum, ao qual outros fins estariam subordinados.

Indaga-se: O que é a felicidade?

Eis o debate: a) felicidade como prazer; b) felicidade como honra e fama (sucesso social); c) felicidade como sabedoria e d) felicidade como combinação de tudo isso.

Sócrates afirmava que a felicidade devia ser encontrada no que ele chamava de perfeição da alma, vale dizer, tornar a alma tão boa quanto possível.

Neste ponto, antes de passar adiante, importa dizer que, dentro do referido comparativo do pensamento humano com as fases da vida de uma pessoa, os jônicos do séc. VI a.C. haviam alcançado o início da adolescência, período em que o solipsismo do recém-nascido já foi abandonado, bem como já se deixou de acreditar que contos de fada são verdadeiros. E, com a adolescência, a infância finda com a crise mais revolucionária da vida humana. Trata-se do segundo esforço de desligamento, mais consciente e mais doloroso, pois a principal preocupação do adolescente é o desligar seu ser individual do ser dos pais e do grupo familiar ou de qualquer outro grupo social que pretenda dominar sua vontade e moldar-lhe a personalidade. O indivíduo precisa se descobrir como ser moral que deve aprender a manter-se sobre seus próprios pés. Esta época é a dos sofistas.

Antífon: sofista que estabelece contraste entre as leis do Estado e a lei da Natureza, sendo esta reputada como o princípio da autopreservação, de tal sorte que cada indivíduo deveria procurar o que é vantajoso para a vida e, consequentemente, agradável. As leis do Estado, de outro turno, prescrevem um comportamento desagradável e, portanto, antinatural. O homem, naturalmente forte, sob o jugo das leis do Estado, é como um leão preso numa rede de proibições e restrições.

A partir daí, Sócrates tecerá sua filosofia. 



A QUESTÃO SOCRÁTICA: o que se pode afirmar sobre o Sócrates histórico?

O problema das fontes

Principais fontes $\left\{\begin{array}{ll} Aristófanes; \\ Platão; \\ Xenofonte; \\ Aristóteles .\end{array}\right\}$

Schleiermacher (1818) – rejeita em bloco as principais características da representação tradicional do filósofo Sócrates. Faz 2 críticas a Xenofonte: 1. Não era filósofo; 2. Expõe Sócrates como um arauto dos valores tradicionais.

Taylor e Burnet (1911) – o Sócrates histórico corresponde totalmente ao Sócrates de Platão. Tal posicionamento decorre da refutação a Xenofonte.

Ceticismo sobre a questão socrática – nasceu na Alemanha, no final do séc. XX, retomando Joël (1895). Diz respeito ao caráter ficcional dos diálogos socráticos (logoi sokratikoi).

Xenofonte e Platão – nunca tiveram como projeto a reconstrução fiel do pensamento socrático, sendo que suas narrativas resultam de um gênero literário, o logos sokratikos, que é explicitamente reconhecido por Aristóteles.

  • Assim, o logos sokratikos não deve ser lido nem interpretado com um documento histórico no sentido estrito, mas, antes, como uma obra literária. Eis aí, pois, a perda de objeto da questão socrática.
Sobre as fontes, Xenofonte divorcia-se de Platão, e Aristóteles não representa uma fonte independente, afinal: 1. Seu testemunho depende quase que totalmente dos diálogos platônicos; 2. Ele interpreta Sócrates em função de seus próprios interesses filosóficos.

Sócrates em Aristófanes

É preciso lembrar que as Nuvens é o único testemunho sobre Sócrates enquanto ele ainda vivia, e que, na época de sua redação (423 a.C.), Platão (428-348 a.C.) e Xenofonte (430-355 a.C.) ainda eram crianças.

à Se considerarmos Sócrates como aluno de Arquelau e Anaxágoras, não é absurdo imaginar que Sócrates, numa primeira etapa de sua “carreira”, possa ter-se consagrado ao estudo da natureza (physis).

Sócrates de Platão

Obras de Platão



Pode-se identificar 10 temas a respeito dos quais as posições defendidas pelo Sócrates dos diálogos de juventude são diametralmente opostas ao do Sócrates dos diálogos da maturidade (Cf. Vlastos 1994, cap. 2: “Sócrates contra Sócrates em Platão”, p. 69-116).

LEIS – único diálogo em que Sócrates está ausente.
  • Parece abusivo e ilegítimo reservar a denominação de “socráticos” aos diálogos de juventude, na medida em que eles não são mais “socráticos” do que os diálogos da maturidade e que colocam Sócrates em cena. Entretanto, há os seguintes argumentos que tentam explicar o porquê de tal denominação:
  1. Dizem respeito ao pensamento do Sócrates histórico; 
  2. Sócrates neles desempenha um papel mais ativo e determinante que nos demais diálogos; 
  3. Compreendem um número maior de temas socráticos, ou seja, temas que eram igualmente expostos e discutidos pelos autores dos logoi sokratikoi, em especial, Xenofonte, i.e., questões éticas e políticas, ao passo que os temas discutidos no Platão da maturidade são ontologia, metafísica, epistemologia e matemáticas.
Filosofia Socrática – Sócrates considera que a divindade confiou-lhe uma missão, a de fazer com que os homens reconhecessem a ignorância que abrigam dentro de si, sem o saber, e que os impede de tornarem-se melhores.

àA declaração de ignorância é, sem dúvida, um dos traços pelos quais o Sócrates de Platão mais se opõe ao de Xenofonte, já que neste, como adiante se verá, não há tal declaração.

Sobre a Declaração de Ignorância: esta declaração, por certo, não se estende a todas as coisas, já que Sócrates sabe que é casado, que é homem etc. Portanto, esta alegada ignorância refere-se aos temais mais importantes, aqueles que dependem da ética.

Indaga-se: Será que Sócrates ignora mesmo os temas éticos? A resposta a esta indagação produzirá reflexos diretos na questão da aporia dos diálogos.

àSob o pretexto da ignorância, Sócrates está assegurado de que jamais terá que responder por uma posição – ele não defende nenhuma – e que estará sempre no direito de ocupar a posição daquele que interroga, pois não é necessário saber para testar ou provar o fundamento de uma pretensão ao saber (vide República I 337e).

àEntão, tem-se uma dissimulação da própria ignorância.

Ironia Socrática 

1. Ele dissimula a própria ignorância; 

Duplo artifício $\left\{\begin{array}{ll}1. \hspace{1mm} Ele \hspace{1mm} dissimula \hspace{1mm} a \hspace{1mm} própria \hspace{1mm} ignorância; \\ 2. \hspace{1mm} Finge \hspace{1mm} reconhecer \hspace{1mm} o \hspace{1mm} saber \hspace{1mm} que \hspace{1mm} seu \hspace{1mm} interlocutor \hspace{1mm} tem \hspace{1mm} a \hspace{1mm} pretensão \hspace{1mm} de \hspace{1mm} possuir. \end{array}\right\}$

* Sobre a dissimulação, ex vi Apologia 19d, 33a; Hípias Menor 369d-e, 372a-c; Hípias Maior 286c.

Interessante: No Lísis, Sócrates pretende mostrar a Menexeno, que se diz amigo de Lísis, que ele, Menexeno, nada sabe sobre a amizade. E como procede Sócrates para alcançar seu intento? Pois bem, primeiramente, busca agradar a Menexeno, de tal sorte a incitá-lo a responder suas perguntas. Então, Sócrates o elogia, atribuindo-lhe um saber sobre a amizade, ao mesmo tempo em que se reconhece ignorante no tema, alegando que tal ignorância se deve ao fato de não ter amigos (211d-212a). Ora, não só é falso que Sócrates não tinha amigos, como Sócrates sabia muito bem em que consiste a amizade, já que acabara de explicar a Lísis (207d-210e), numa discussão não presenciada por Menexeno (207d a 211a).

àAos que se recusam a considerar que a declaração de ignorância seja uma dissimulação, cabe esclarecer o grande número de passagens em que Sócrates reivindicou, abertamente, um saber no domínio das coisas mais importantes. Indaga-se: Como pode Sócrates declarar-se, ao mesmo tempo, ignorante e ostentar tantos conhecimentos morais?

Exemplos

1. No texto (Apologia) em que a Pítia (Pitonisa) o proclama o mais sábio dos homens, justamente porque ele é o único que reconhece a própria ignorância, Sócrates sabe:

a) que aquele que corrompe um homem se expõe a sofrer dele um dano (25e); 
b) que é mau e vergonhoso cometer a injustiça e desobedecer a alguém melhor que ele mesmo (29b); 
c) afirma que a virtude não vem das riquezas, mas que, ao contrário, é da virtude que vem a riqueza e todos os outros bens (30b); 
d) considera não ser permitido que um homem de valor sofra um dano da parte de quem não tem o mesmo valor (30d); 
e) afirma que não foi injusto com ninguém, já que nunca propôs algo que ele sabe ser um mal (37b); 
f) apresenta, como verdade, “que nenhum mal pode atingir um homem de bem, nem durante sua vida nem depois da morte, e que os deuses não se desinteressam de sua sorte” (41c-d) 

2. Além da Apologia, extrai-se, ainda: 

a) afirma que a alma é muito mais preciosa que o corpo e que jamais é bom, tampouco belo, cometer a injustiça (Críton 49a); 
b) afirma ser impossível ser feliz quando se vive no mal e na injustiça (Górgias 470e, 472c-d, 473a, 479e, 507c, 512b); 
c) afirma ser melhor sofrer uma injustiça que cometê-la (Górgias 469b-c, 474b, 475e, 508e; República I 353e – 354a); 
d) afirma que a melhor defesa é não cometer nenhuma injustiça (Górgias 522d); 
e) afirma que a justiça é mais forte do que a injustiça (República I 351a). 

àPara conciliar as numerosas passagens nas quais Sócrates se declara ignorante com as não menos numerosas passagens em que reivindica conhecimentos no domínio moral, os intérpretes que acreditam na sinceridade da declaração de ignorância propõem:
  1. Distinção entre “saber” e “conhecer” – o saber que Sócrates recusa atribuir-se é um conhecimento certo e infalível, enquanto que o saber que lhe acontece mostrar não seria nada mais do que conhecimentos não definitivos que ele subscreve provisoriamente, na medida em que eles ainda não foram refutados (G. Vlastos), vale dizer: o saber exposto por Sócrates consiste em diferentes proposições sujeitas a discussão e que jamais foram derrubadas por seus interlocutores, de modo que ele se acha autorizado a defendê-las até que seja demonstrado que não tem razão em dar-lhes fé (Górgias 509a, 527b).
Refutação a este argumento:
  • à Os conhecimentos que Sócrates se atribui não consistem sempre em proposições que sobreviveram ao elenchos (refutação); 
  • à Sócrates jamais expôs este gênero de distinção (saber x conhecer) entre diferentes graus de conhecimento; 
  • à Às vezes, Sócrates garante ser impossível que algo seja diferente do que ele afirma ser (Górgias 472d), ou, ainda, que sua posição é irrefutável, porquanto ela corresponde à verdade (Górgias 473b, 508b; República I 335e).
àIsso tudo dá a entender que Sócrates está certo de possuir um conhecimento definitivo, e não meramente provisório.

MAS, outro argumento:
  1. Não se pode negligenciar as passagens nas quais Sócrates atribui aos deuses a fonte de alguns conhecimentos que ele externa no campo moral. 
Exemplos: 
  • Coisas do amor (Lísis 204c; Banquete 177d, 198d; Fedro 257a); 
  • Sobre a alma, seus conhecimentos lhe teriam sido transmitidos pelos médicos do deus Zalmóxis (Cármides 156c – 157c); 
  • Conclui, do fato de seu sinal divino não ter intervindo para interromper o curso de seu processo, que sua condenação à morte não é um mal (Apologia 40 a.C.).

àEntão, por este viés, se Sócrates sabe algo, não deve tal saber a si mesmo, mas aos deuses, únicos verdadeiros detentores da sophia, o que, em tese, permite conciliar sua declaração de ignorância com seus saberes.

TODAVIA, como, na grande maioria dos casos, ele não atribui qualquer origem divina aos conhecimentos que expõe, há boas razões para crer que sua declaração de ignorância é uma hipocrisia, afinal, se Sócrates nada sabe, exceto, precisamente, que reconhece nada saber, ele não pode, em princípio, propor a seus interlocutores uma definição de que esteja certo.

Sócrates a serviço da divindade e a autonomia da filosofia

Dentro da perspectiva de que Sócrates estava a serviço da divindade, que o iluminava com determinados saberes, é de se indagar sobre a autonomia da filosofia em relação à divindade.

àA favor da autonomia – ex vi Críton 46b: “Sou homem, como vês (e não somente hoje pela primeira vez, mas todo o tempo), que não dá seu assentimento a nenhuma regra de conduta que, quando aplico a ela meu raciocínio, não se revele a mim como sendo a melhor”.

Autonomia: no sentido de reconhecer unicamente, como normas de ação, as prescrições que satisfazem às exigências da razão.

NO ENTANTO, será que se pode falar em autonomia, no sentido forte do termo, diante do fato de Sócrates aceitar, de pronto e sempre, uma intervenção divina, mesmo sem considerar que a razão possa colocar em dúvida, contestar ou até rejeitar tal intervenção?

  • Na medida em que a interpretação dada por Sócrates acerca da intervenção do sinal divino se efetua sob a égide da razão e deve satisfazer às exigências da razão, pode-se afirmar que este momento exegético está de acordo com o racionalismo de Sócrates, PORÉM, nem por isso a razão é soberana, pois se mostra dócil e obediente a um sinal divino cujas intervenções ela nunca contesta. 
  • Sócrates raciocina a partir da intervenção divina, cujo significado ele tenta descobrir, mas não contesta jamais a própria intervenção.
àDesse modo, considerando que Sócrates aceita, sem discussão, intervenções divinas, algumas das quais decidiram o próprio curso de sua vida, parece impossível sustentar o caráter autônomo de sua ética (ex vi Apologia 31d).

NOTA: Platão e Xenofonte jamais falam do “demônio” (daimon) de Sócrates, mas, antes, da divindade (daimonion) que se dirige a ele por intermédio de um sinal. A associação do sinal divino a um “daimon”, que é uma forma de divindade intermediária entre os homens e os deuses, só ocorreu no séc. II d.C., à época do médio platonismo, por Plutarco, Máximo de Tiro e Apuleio.

Diante de todo o exposto, como já sinalizado alhures, indaga-se: São mesmo aporéticos os diálogos levados a efeito por Sócrates?

1. Sócrates sabe muito mais sobre a natureza da virtude do que ele está disposto a admitir; 

2. Platão apresenta Sócrates como um modelo de virtude. 
    Ora, como virtude é conhecimento (um dos paradoxos socráticos)
            e como Sócrates afirma ser ignorante,
            não deveria, por conseguinte, ser virtuoso 

3. Sócrates vangloria-se de sempre manter a mesma linguagem sobre os mesmos temas (Górgias 490e) e de assemelhar-se, neste aspecto, à própria filosofia (Górgias 482a). 
Ora, é próprio da ignorância jamais dizer a mesma coisa sobre o mesmo tema; 
        é próprio da ignorância ter opiniões errantes (Sofista 230b) 
        então, se Sócrates se proclama ignorante, eis aí uma contradição.

àA comprovada constância em suas posições é um indício de seu saber.

àPlatão refugia-se por trás da declaração de ignorância para compor diálogos falsamente aporéticos.

Sobre o método socrático: Elenchos x Maiêutica

O elenchos tinha a seguinte estrutura lógica: 
  1. o respondente defende uma tese "p", que passa a ser alvo da refutação; 
  2. Sócrates percebe que o respondente concorda com as premissas "q" e "r", que são aceitas sem discussão; 
  3. Sócrates mostra, e o respondente reconhece, que "q" e "r" acarretam não-p; 
  4. Sócrates afirma que "p" foi demonstrado falso e não-p verdadeiro. 
Importa perceber que, logicamente, tudo o que Sócrates provou foi que a tese inicial é incompatível com a conjunção de premissas acordadas, mas não que não-p não fosse verdadeiro. 

De todo modo, o elenchos se dirige a um interlocutor que se acha sábio, mas que, na verdade, é ignorante, ao passo que a maiêutica, que é uma construção platônica no Teeteto, visa, ao contrário, revelar a interlocutores, que se acham ignorantes, que eles são, na verdade, sábios. Operou-se, portanto, uma inversão. 

No Teeteto, o retrato de Sócrates transforma-se ao sabor da evolução do pensamento de Platão, que associa, pela reputação, o nome de Sócrates à maiêutica, dando, assim, base à sua doutrina da reminiscência, afinal, as almas que Sócrates ajuda a nascer estão “grávidas” de conhecimentos que elas contemplaram e adquiriram antes de sua queda num corpo e que elas abrigam sem o saber, porque os esqueceram quando foram fixadas a um corpo. 

Assim, aos 3 elementos essenciais do retrato de Sócrates, quais sejam: 1) declaração de ignorância; 2) afirmação segundo a qual jamais instruiu alguém e 3) missão que lhe foi confiada pela divindade, Platão introduziu um 4º elemento: a função de parteiro, que está ausente dos diálogos ditos da juventude. 

Portanto, enquanto a missão de Sócrates, na Apologia, consiste em examinar o outro, com a ajuda do elenchos, a fim de revelar-lhe a ignorância, sua “nova” missão, no Teeteto, consiste, agora, em fazer nascer as almas, ajudando-as a descobrir em seu seio os conhecimentos que elas abrigam sem o saber. 

Os paradoxos socráticos 

Denominam-se paradoxos socráticos as posições éticas por ele defendidas na contramão do senso comum do grego daquela época. Podem-se citar 5 paradoxos como sendo os principais: 

  1. A virtude é um conhecimento; 
  2. Ninguém faz o mal voluntariamente; 
  3. As virtudes constituem uma unidade; 
  4. É preferível sofrer injustiça a cometê-la; 
  5. Jamais se deve responder à injustiça com a injustiça, nem fazer mal a outrem, nem mesmo àquele que lhe fez mal. 
Dentre tais paradoxos, o primeiro é de especial importância. Os gregos consideravam que a virtude era um dom divino, ou, ainda, que ela era natural, ou, ao contrário, que ela era o fruto do exercício, mas era incomum considerar, como Sócrates, que ela era um conhecimento que, uma vez adquirido, bastava para tornar-se virtuoso. 

Ora, se a virtude é um conhecimento, não se tem certeza alguma de que se está a levar uma vida boa enquanto permanecer na ignorância da natureza da virtude. Portanto, é urgente definir as diferentes virtudes, porquanto a definição é justamente o enunciado do conhecimento em que consiste cada virtude particular. 

Na opinião de Aristóteles, Sócrates foi o primeiro a tentar descobrir definições universais das diferentes virtudes morais (ex vi Metafísica M 4, 1078 b 17-19). 

Importante notar que, a partir do saber, como garantia do sucesso de uma atividade técnica, Sócrates está convencido de que o saber também serve de garantia de êxito da ação na esfera ética e política. Veja, v.g., Górgias (460 a-b): assim como basta estudar medicina para ser médico, ou arquitetura para ser arquiteto, assim aquele que aprendeu a justiça, forçosamente é justo. 

De todo modo, Sócrates considerava haver diferenças no ergon (efeito/produto) oriundo da técnica e no decorrente da virtude. 

1ª diferença – o saber técnico é uma condição necessária para o êxito da ação, ao passo que o saber moral é, além de uma condição necessária, também suficiente (ex vi Hípias Menor – 371e-376c). Portanto, a competência técnica é condição necessária, mas não suficiente, afinal, aquele que conhece a justiça não pode agir com injustiça, e é precisamente por isso que o saber moral, à diferença do técnico, é uma condição necessária e suficiente para garantir o sucesso da ação. 

2ª diferença – o saber técnico está subordinado ao saber moral. O conhecimento do bem e do mal desapruma o saber técnico que não sabe determinar, com segurança, se o resultado que ele produz é realmente um bem. Vide Cármides (173 a-d) – uma cidade regida pela exigência da competência técnica não tem a garantia de conhecer a felicidade. Sócrates rejeita uma cidade tecnocrática, onde o único imperativo fosse o da competência. 

3ª diferença – o saber técnico pode ser objeto de ensinamento, ao passo que não é certo que a virtude possa ser ensinada, não obstante seja um saber. Políticos reputados virtuosos não foram capazes de ensinar a virtude a seus filhos. Todavia, a impotência dos políticos para tornar melhores seus filhos e seus concidadãos talvez se deva ao fato de eles não serem realmente virtuosos. 

_ O segundo paradoxo, segundo o qual ninguém faz o mal voluntariamente, decorre do primeiro, porquanto sendo a virtude um conhecimento, e como o conhecimento da virtude acarreta necessariamente uma ação que lhe é conforme, segue-se que aquele que faz o mal o faz por ignorância e contra sua vontade. Sócrates se recusa admitir que se possa fazer o mal com conhecimento de causa. Para ele, os homens nunca escolhem o mal pelo mal (Górgias 468 a-c; Mênon 77c-78b) e fazem sempre o que lhes parece ser um bem. Todavia, por vezes ocorre ao homem, em razão de sua ignorância do verdadeiro bem, tomar por um bem real o que não é senão um bem aparente. Portanto, pode-se dizer que a ética socrática é intelectualista. 

_ Sócrates insurge-se contra a opinião comum, segundo a qual o saber não possui qualquer força, nem de direção, nem de comando, e pode ser facilmente neutralizado e revertido por impulsos irracionais (cf. Protágoras 352b). Para ele, o saber não é inerte, mas possui uma força que lhe permite determinar, soberana e infalivelmente, a ação humana (cf. Protágoras 352c). 

_ Assim, Sócrates nega o problema da akrasia. O fato de ser vencido pelo medo, pela cólera ou pelo desejo, na verdade, não mais é que ignorância (cf. Protágoras 358c, 359d). Portanto, para Sócrates, a ignorância é não apenas um mal (cf. Górgias 477b; Eutidemo 281e), mas o maior dos males (Górgias 458a-b). 
  • Importante notar que não apenas a akrasia é rechaçada por Sócrates, como, também, a enkrateia (compreendida como o domínio de si), já que o conhecimento é a condição necessária e suficiente para que se adote uma conduta virtuosa. Então, da negação da akrasia decorre, necessariamente, a inutilidade da enkrateia, porquanto se a akrasia é impossível quando o saber está presente, a enkrateia é supérflua. Não é por acaso que há uma reconciliação do Sócrates de Platão com a enkrateia a partir do momento em que Platão, na República, desenvolve uma concepção tripartida da alma, em função da qual reconhece, daí em diante, a possibilidade da akrasia, visto que nada impede que um homem dominado pelos desejos, que habitam a parte inferior da alma, aja ao contrário de seu conhecimento do bem. Ora, se o saber não basta mais para garantir uma conduta virtuosa, a enkrateia encontra sua razão de ser, que é a de secundar o saber e a razão (República IV 430e-431b). Portanto, depois de ter ignorado a enkrateia nos diálogos da juventude, sob o pretexto de que ela era inútil, já que bastava o saber, Platão com ela se reconcilia, atribuindo-lhe importância. 

  • Ao contrário do Sócrates de Xenofonte, que atribui à enkrateia um estatuto privilegiado, o de fundamento da virtude (Memoráveis I, 5,4), o Sócrates, dos diálogos da juventude de Platão, não lhe atribui nenhum papel. 

_ O terceiro paradoxo, consubstanciado no entendimento de que as virtudes constituem uma unidade, trata-se de um paradoxo porque para a grande maioria dos contemporâneos de Sócrates é possível possuir algumas virtudes, mas ser desprovido de algumas outras, de modo que alguém poderia ser piedoso e negligente ao mesmo tempo. Sócrates, ao contrário, acha que é impossível possuir uma virtude independentemente das outras, já que o saber, que serve de fundamento a cada uma delas, é essencialmente o mesmo, qual seja, o conhecimento do bem e do mal (Laques 197e-199e). Como a virtude é um saber e o conhecimento do bem e do mal cobre, necessariamente, tudo o que importa saber no domínio ético, este conhecimento é a fonte de todos os outros. 

O Sócrates de Xenofonte 

Escritos socráticos de Xenofonte: Memoráveis, Banquete, Econômico e Apologia. 

Diferenças

Sócrates de Platão
Sócrates de Xenofonte
1. Pretende-se ignorante e busca, em vão, definir as virtudes
Não se declara ignorante e está em condições de definir as virtudes (Memoráveis I 1,16; III 9; IV 6)
2. Está engajado numa busca sempre recomeçada
Jamais dá a impressão de estar à busca de uma resposta ou de uma solução a um problema que ele se propõe
3. Apresenta-se como aluno de seu interlocutor e diz que nunca foi mestre de ninguém (Apologia 19d, 33a)
Reconhece abertamente que ensina e que é um expert em educação (Memoráveis I 6, 13-14; IV 2, 40; IV 3, 1; IV 7,1 e Apologia 20)
4. A política é um verdadeiro saber moral de vocação arquitetônica, no caso do conhecimento do bem e do mal que desapruma as diferentes técnicas, na medida em que ela fixa as finalidades que elas devem perseguir para o bem da cidade (Cármides 174 b-c)
A política é uma técnica como outra qualquer. É uma simples competência técnica que se pode adquirir com um mestre reconhecido (Memoráveis III 6-7; IV 2, 2-7)
5. Não reconhece que ensina política aos jovens e pensa ser o único a fazer política, no sentido de ser o único a preocupar-se em tornar melhores os seus concidadãos (Górgias 521d)
Admite, sem rodeios, que forma jovens para a política (Memoráveis I 2, 17-18; I 6, 15; IV 3, 1)
6. É completamente indiferente às condições de prosperidade material. Considera que a única tarefa do bom cidadão é tornar melhores (virtuosos) seus concidadãos (Górgias 517 b-c)
Atribui grande importância à economia em geral e às condições de prosperidade material (Memoráveis II 7; III 4, 6-12). A tarefa do bom cidadão é enriquecer a cidade (Memoráveis III 6, II 7,2 e IV 6-14)
7. É muito crítico sobre os grandes dirigentes atenienses de seu tempo, em particular Péricles e Temístocles (Górgias 503 c-d, 517 b-c)

Ao contrário, consagra-lhes o maior respeito (Memoráveis II 6, 13; Banquete VIII 39)
8. É estranho à busca das honras e prega a renúncia a esta forma de ambição (Górgias 526d, República I 347 b, Fédon 82c)
É muito sensível à glória e ao renome, incentivando aqueles que aspiram às honrarias (Memoráveis I 7,1; III 3, 13-14; III 7,1)                                                      
9. Conhecer-se a “si mesmo” corresponde à alma e que é preciso viver em função dos bens da alma, muito mais que em função dos bens do corpo e dos bens exteriores (Alcibíades 129 d-133d)
O conhecimento de si mesmo consiste em reconhecer a extensão e os limites de sua própria dynamis, ou seja, de sua capacidade no plano técnico (Memoráveis I 7, 4; III 7; IV 2, 25-29)
10. Identifica a virtude com um conhecimento, não reconhecendo que se possa perdê-la.
Considera a virtude como fruto do exercício (askêsis) e que se pode perdê-la logo que se deixa de treinar (Memoráveis 12, 19-29, ; II 1,20; II 1, 28; II 6, 39; III 3, 6; III 5, 13-14; III 9, 1-3)
11. Interessa-se pelo cuidado da alma muito mais que o cuidado com o corpo (Apologia 29e, Alcibíades 132c, Cármides 156d-157c, Fédon 107c)
Na medida em que a força física é indispensável à aquisição e ao exercício da virtude, dá muita importância ao cuidado do corpo e se interessa muito pouco pelo cuidado da alma (Memoráveis I 2, 4 e III 12)
12. Afirma que jamais se deve fazer mal a alguém, nem mesmo para revidar o mal sofrido
Considera que a virtude de um homem consiste em fazer bem a seus amigos e mal a seus inimigos (Memoráveis II 1, 28; II 2,2; II 3, 14; II 6, 35; IV 2, 15-17)
13. Submete seus interlocutores ao elenchos, em especial, nos diálogos da juventude
Faz uso de outro tipo de discurso que não o elenchos (Memoráveis I 4, 1)
14. Célebre por sua natureza desconcertante (atopia), que tem por efeito confundir e desorientar seus interlocutores
Raramente é imprevisível e, com exceção de seu primeiro diálogo com Eutidemo, ele jamais faz seus interlocutores caírem no embaraço (Memoráveis IV 2)
15. Considera-se investido de uma missão pelo deus de Delfos, a missão de viver filosofando
Não se reconhece investido de nenhuma missão dessa natureza, tampouco vê, no exercício da filosofia, concebida como o exame de si mesmo e do outro, um ato de piedade e um engajamento a serviço da divindade. Sua concepção de piedade é, em linhas gerais, a da tradição (Memoráveis I 3, 1; IV 3, 16; IV 6, 2-4)
16. O sinal divino (daimonion) jamais intervém a favor dos amigos de Sócrates e nunca indica o que ele deve fazer, mas apenas se manifesta para impedi-lo de começar o que está prestes a fazer (Apologia 31d, 40a; Eutidemo 272e; Fedro 242b-c)
O sinal divino (daimonion sêmeion) indica, para o próprio bem de Sócrates, e de seus amigos, o que deve fazer e o que deve evitar (Memoráveis I 1, 2-5; I 4, 15; IV 3, 12; IV 8, 1; Apologia 12-13)
17. Sócrates não assimila o sinal divino, pura e simplesmente, aos outros processos divinatórios, ainda que veja nele uma forma particular de vaticínio (Apologia 40a; Fedro 242c)
Vê no sinal divino um modo de adivinhação com qualquer outro (Memoráveis I 1, 2-5; I 4, 15; IV 3, 12; Apologia 12-13)
18. Recusa-se a considerar que os deuses possam ser a causa de um mal (República II 379b)
Reconhece que os deuses têm o poder de fazer mal aos homens (Memoráveis I 4, 16)

* A principal diferença, todavia, está na questão da akrasia e da enkrateia. 

Pois bem, Xenofonte, em Memoráveis I 2, assevera: 

“O que me assombra é que alguns pudessem ter-se deixado convencer de que Sócrates corrompia a juventude; antes de mais nada, além do que já foi dito, ele se dominava mais do que qualquer outro homem (pantôn anthrôpôn enkrastestatos) no que diz respeito aos prazeres do amor e do ventre; depois, ele era mais resistente (karterikôtatos) ao frio, ao calor e às fadigas de todo tipo; além disso, ele se havia habituado a viver modestamente, de modo que, mesmo possuindo muito poucas coisas, dispunha comodamente do suficiente (arkounta). 

Há 3 qualidades nesta passagem $\left\{\begin{array}{ll}1. \hspace{1mm} Enkrateia \hspace{1mm} – \hspace{1mm} domínio \hspace{1mm} de \hspace{1mm} si \hspace{1mm} mesmo \hspace{1mm} em \hspace{1mm} relação \hspace{1mm} aos \hspace{1mm} prazeres \hspace{1mm} corporais; \\ 2. \hspace{1mm} Karteria \hspace{1mm} – \hspace{1mm} resistência \hspace{1mm} em \hspace{1mm} relação \hspace{1mm} às \hspace{1mm} dores \hspace{1mm} físicas; \\ 3. \hspace{1mm} Autarkeia \hspace{1mm} – \hspace{1mm} autossuficiência. \end{array}\right\}$

  • Esta tríade forma o núcleo da ética socrática em Xenofonte (Memoráveis: I2, 14; I2,60; I3, 5-14; I5, 1; I5, 6; I6, 6-10; II 1; III 14; IV 5, 9; IV 7, 1; IV 8, 11; Apologia 16; Banquete IV 43). 
  • Importa notar que os elementos dessa tríade não estão em pé de igualdade, mas formam uma hierarquia, em que os 2 primeiros elementos concorrem para a realização do terceiro (Memoráveis I 6 – diálogo entre Sócrates e Antifão); 
  • Sócrates, em Xenofonte, chega a afirmar que a enkrateia é o “fundamento da virtude” (Memoráveis I 5, 4). A enkrateia aparece claramente como a condição prévia à aquisição da virtude e fonte de toda utilidade
Utilidade proteiforme da enkrateia: 

1. Indispensável a quem exerce o poder, já que dominar-se a si mesmo é condição prévia a quem governará os outros (Memoráveis I 5, 1; II 1, 1-7); 

2. É condição da liberdade, pois a pior escravidão é, necessariamente, a do homem subjugado às suas paixões e dominado pelos prazeres, uma vez que, em tal cenário, não mais dispõe da liberdade necessária à busca do bem e da virtude (Memoráveis I 5, 5; IV 5, 2-6; Econômico I 17-23; Apologia 16); 

3. É condição da justiça, já que a falta de enkrateia conduz à cobiça e a apropriar-se dos bens alheios (Apologia 16; Memoráveis IV 2, 38); 

4. É condição indispensável da amizade (Memoráveis II 6, 1). Sem enkrateia, trata-se o outro como meio, um simples instrumento para saciar os próprios desejos e obter prazer (Memoráveis II 1, 1-20 – diálogo entre Sócrates e Aristipo). A verdadeira amizade só é possível entre homens virtuosos e, portanto, senhores de si mesmos; 

5. É condição da riqueza e da prosperidade. Se não houver enkrateia, o dinheiro será inevitavelmente dilapidado para a satisfação dos desejos (Memoráveis I 2, 22; I 3, 11; Econômico II 7); importante destacar que a opinião, segunda a qual Sócrates não se interessava por economia, provém, se dúvida, da Apologia platônica, onde Sócrates reconhece ser pobre (23b-c, 31c, 36d), bem como que negligenciou seus próprios negócios e a administração de sua casa (31b, 36b). O Sócrates de Xenofonte, ao contrário, não só não é pobre, como não pode permitir-se afirmar que negligenciou, por pouco que seja, a gestão de seus negócios domésticos. Sócrates não é pobre, pois possui mais do que necessita para viver (Econômico II 2-10 e XI 3; Memoráveis IV 2, 37-39). A riqueza e a pobreza não dependem da soma de dinheiro de que se dispõe, mas da limitação das necessidades. É preciso saber lidar com a própria econômica para poder bem administrar a polis. 

6. É condição para o exercício da dialética. A dialética socrática, em Xenofonte, não é a dicotômica que Platão põe no Sofista e no Político, que consiste em dividir um gênero para se chegar a uma definição. Trata-se, em Xenofonte, da aptidão para subsumir um conceito ou uma ação ao bem ou ao mal, que são categorias. Então, a aptidão para distinguir o bem e o mal, na ordem do discurso e da ação, é exclusivo de quem domina a si mesmo (enkrateia). Eis uma passagem: “Só os homens que se dominam são capazes de examinar, em todas as coisas, aquelas que são as melhores; selecionando-as (dialegontas) em atos e em palavras segundo seus gêneros (kata genê), eles escolhem o bem e se abstêm do mal” (Memoráveis IV 5, 11). 

  • Sócrates(x) distingue-se de Sócrates(p) também com relação à autarcia. Como Sócrates(p) se declara ignorante e está, incansavelmente, à busca do saber e da virtude, que cumulariam, enfim, sua aspiração ao bem, ele não pode ser autárcico. 
Sócrates de Aristóteles 

Aristóteles nasceu cerca de 15 anos após a morte de Sócrates. 

Sua narrativa sobre Sócrates compõe-se de: 
  • 34 passagens curtas, extraídas de obras conservadas; 
  • 7 fragmentos de obras perdidas (textos reunidos, traduzidos e comentados por Deman (1942). 
O interesse nos textos aristotélicos sobre Sócrates reside no fato de que neles se encontra uma apreciação crítica da filosofia socrática. Aristóteles assume clara posição, seja para aprová-lo ou reprová-lo. 

Aristóteles coloca a contribuição de Sócrates mais no campo da epistemologia que no da ética. Assenta: “Há duas descobertas, com efeito, entre as quais se poderia, com todo direito, atribuir o mérito a Sócrates: o discurso indutivo e a definição geral, que, tanto um como a outra, estão no ponto de partida da ciência.” (Metafísica, M 4, 1078 b 27-30) 

Eis, então, para Aristóteles, o mérito de Sócrates: discurso indutivo e a busca pelas definições universais, afinal, Sócrates não separava os universais nem as definições, de tal modo que não promoveu o objeto da definição universal à categoria da essência subsistente por si mesma, separada da realidade sensível. 

àNão se pode atribuir a Sócrates a paternidade da doutrina das formas inteligíveis, porque jamais considerou que o universal formulado pela definição é um ser separado das coisas sensíveis. 

Aristóteles contesta Sócrates quanto à virtude ser um conhecimento, bem como o acusa de ter negligenciado as fontes da virtude e o modo como adquiri-la (Ética a Eudemo, I 5, 1216 b 10). 

Enquanto Sócrates fixa as virtudes morais na parte racional da alma, Aristóteles também as coloca na parte irracional, considerando, ao contrário de Sócrates, que o saber não tem qualquer função na gênese e na aquisição da virtude. 

Provocação aristotélica ao pensamento socrático: “o que queremos não é saber o que é a coragem, mas sermos corajosos” (Ética a Eudemo, I 5, 1216 b 21-22). 

Sobre a questão da akrasia, apesar de Aristóteles discordar que a virtude é um conhecimento, como afirma Sócrates, ele também afirma que, estando presente o saber, a akrasia não é possível. (Ética a Nicômaco, VII 3, 1145 b 27-29; VII 5, 1147 b 13-17). 

Para Aristóteles, diversamente de Sócrates, há 2 tipos de conhecimento, um, que está disponível e, outro, que está presente. Do mesmo modo que se incorre em erros de silogismo teórico, também se pode incorrer no âmbito da prática, mas, aí, não se trata de afirmar algo errado, mas de adotar um comportamento errado. O ato acrático equipara-se ao do louco, do bêbado e do que dorme. O sentido de “saber” é que está em jogo na análise em Aristóteles.