Tosqueiras Musicais

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

"TOSQUEIRA" 10: A palavra infinita que criou o universo.

Walter Gomide

Com a palavra, Deus criou o mundo e instituiu a distinção entre transcendência e imanência. Como se deu isto? Nenhuma resposta educada e bem fundamentada pode ser dada a esta questão, mas uma “tosqueira” pode – e deve – oferecer uma “imagem lógica” deste processo.

E é com tal propósito que escrevo esta décima edição da “tosqueira”: oferecer uma possível imagem – que, como tal, namora com o universo da contradição – de como o Mundo veio da Palavra. Não pretendo aqui, humildemente, considerar de forma exaustiva todos os passos da criação do mundo, nem mesmo estou preocupado com os últimos resultados da cosmologia: estes nada me diriam, posto que o que eu quero é ilustrar “a primeira aparição fenomenológica” de um “lógos” que se reconhece como criador do mundo, e não descrever de forma esquemática a passagem da palavra divina à sua aparição como universo físico observável – talvez, daqui a uns dez anos, isto seja possível, mas por enquanto é pura precipitação....

Comecemos, então, com a tese de que Deus “separou” em sua mente infinita uma quantidade infinita de môndas criadas por ele mesmo: em Deus, basta pensar em algo para que este algo seja; a distinção entre sentido e referência, para Deus, é ausente de significado. 

O postulado acima, a tese de que Deus separou ou criou uma quantidade infinita de mônadas, será chamada de TESE LEIBNIZIANA – sem referências bibliográficas quanto à razão do nome da tese: tudo “tosco”. Adicionemos a esta tese, a restrição de que a infinitude em questão é do tamanho dos números naturais, isto é, a cardinalidade deste conjunto de mônadas, que chamarei de $M$, é igual a $\aleph_{0}$, o menor cardinal transfinito existente. A tese leibniziana, uma vez acrescida desta restrição quanto ao tamanho do infinito monadológico, será chamada de POSTULADO CANTOR-LEIBNIZ – tenho minhas razões para esta denominação e não as darei aqui, porque julgo irrelevante tal informação – é muita educação estilística para uma “tosqueira”. 

Assim, Deus “separou” em seu intelecto o conjunto $M$, mas não só isto: ao mesmo tempo em que Deus separa em seus pensamentos a coleção $M$, Ele “nomeia” todos os elementos de $M$, distinguindo-se deles na qualidade de “Criador”: cada mônada de $M$ aparece ao intelecto de Deus como “criatura nomeada”. Os nomes destas mônadas são constantes lógicas indexadas com a sequência dos números naturais. Deste modo, o conjunto $M$ pode ser considerado como exaustivamente conhecido por Deus, uma vez que Ele sabe a posição, por meio de “pronomes demonstrativos”, de cada mônada em $M$. O mais próximo que nós, meros humanos, podemos nos aproximar disto é através da listagem dos elementos de $M$:

$M = \{m_{1}, m_{2}, m_{3}, ...\}$

Temos, então, que cada mônada é nomeada por Deus através de uma constante indexada por um número natural, e tal postulado que afirma que Deus conta ou nomeia os pontos originários do universo - as mônadas -, através dos números, também se encontra em Cantor, o domesticador do infinito. 

Mas a consciência que Deus tem de que Ele é o criador de todos os elementos de $M$ pressupõe que Deus dê um nome a si, e este nome é $m_{\omega}$, em que o subíndice $\omega$ indica o primeiro ordinal transfinito de Cantor, um número inacessível por meio de qualquer procedimento, de sintaxe finita, realizado com os números naturais.

Como Criador das mônadas, Deus coloca diante de si, através de seu intelecto, a intuição imediata das seguintes proposições:

1) $m_{\omega}$ criou $m_{1}$ - em símbolos ordinários da lógica de primeira ordem, tal enunciado é representado por $C (m_{\omega}, m_{1})$, em que $C (x, y)$ é o predicado diádico "$x$ cria $y$";

2) $m_{\omega}$ criou $m_{2}$ - em símbolos, $C (m_{\omega}, m_{2})$;

3) $m_{\omega}$ criou $m_{3}$ - em símbolos, $C (m_{\omega}, m_{2})$;
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k) $m_{\omega}$ criou $m_{k}$ - em símbolos, $C (m_{\omega}, m_{k})$.
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A conjunção de todas as proposições acima listadas se dá imediatamente no intelecto de Deus, e é neste momento, em que Deus se intui intelectualmente como o criador de todas as mônadas, que o LÓGOS divino “aparece” como princípio ordenador do mundo. O mais próximo que podemos chegar da intuição divina que instaura o lógos é através da expressão da conjunção infinita acima mostrada por meio de uma única expressão, sinteticamente intuída pelo nosso intelecto. Consegue-se isto através do operador infinitário de conjunção, presente em linguagens infinitárias, por exemplo, do tipo $L (\omega_{1}, \omega)$, o que nos dá a expressão que segue:

$\wedge_{\hspace{1mm} i \hspace{1mm} \in \hspace{1mm} \omega} \hspace{1mm} C \hspace{1mm} (m_{\omega}, \hspace{1mm} m_{i})$

A expressão acima, que será chamada de PRINCÍPIO DE SURGIMENTO DO LÓGOS – ou, mais simplesmente, $PSL$ – é a maneira de dizer, em linguagem infinitária, a conjunção de todas as proposições listadas acima de 1) até k ) e estendendo-se potencialmente até o infinito.



Desta forma, postulo aqui que $PSL$, quando presente no intelecto de Deus, determina a aparição do lógos divino, e a distinção entre imanência e transcendência se estabelece. 

Da mesma forma, as mônadas criadas, através de $PSL$, reconhecem-se como “criaturas”. Isto porque a relação $C \hspace{1mm} (x, y)$  - “x cria y” – admite a forma passiva “y é criado por x”, forma esta que será representada simbolicamente por $C^{-1} \hspace{1mm} (y, x)$. Mas, desta maneira, $C^{-1} \hspace{1mm} (y, x)$ é uma função constante que, para cada mônada $m_{\hspace{1mm} i \hspace{1mm} \in \hspace{1mm} \omega}$, associa a mônada criadora $m_{\omega}$ que é o “nome que Deus dá a si mesmo”. A representação desta relação funcional entre o conjunto $M$ das mônadas e Deus, a mônada $m_{\omega}$, é dada da forma seguinte:

$M \rightarrow^{C^{-1}} \hspace{2mm} \{ m_{\omega} \}$

A expressão acima (“toscamente” escrita) significa que qualquer mônada $m_{\hspace{1mm} i}$ que pertença a $M$ é associada à mônada $m_{w}$  por meio da relação (função) $C_{-1} \hspace{1mm} (y, x)$. Em português claro e simples, "$M \rightarrow^{C^{-1}} \hspace{2mm} \{ m_{\omega} \}$" significa que todas as mônadas foram criadas por Deus. 

Por tais razões, postulo que $C^{-1} \hspace{1mm} (y, x)$ é a relação de participação dos entes criados no Criador, e que é por meio de tal relação que as mônadas apercebem a Deus como suas Causas Eficiente, Formal e Final.

E tudo começa quando o intelecto de Deus põe diante de si a conjunção infinita $PSL$. A partir deste “momento da eternidade”, o Mundo se separa de Deus, e a “TRANSCENDÊNCIA COMEÇA JUNTO COM A IMANÊNCIA”.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

"TOSQUEIRA" 9: Sócrates: ignorante ou dissimulado? Mas de qual Sócrates se está mesmo a falar? Para o bem ou para o mal, já aviso, ao final da leitura, as dúvidas serão ainda maiores!

Gilbert Ronald Lopes Florêncio

Primeiro, uma brevíssima panorâmica

Sócrates $\left\{\begin{array}{ll}Sofronisco (pai) \hspace{1mm} – \hspace{1mm} escultor/talhador \hspace{1mm} de \hspace{1mm} pedras \hspace{1mm} (Eutifron 11c); \\ Fenareta \hspace{1mm} (mãe) \hspace{1mm} –  \hspace{1mm}aquela  \hspace{1mm}que \hspace{1mm} faz \hspace{1mm} aparecer \hspace{1mm} a \hspace{1mm} virtude \hspace{1mm} (Teeteto \hspace{1mm} 149a). \end{array}\right\}$


Pela tradição Xenofonte/Platão – era casado com Xantipa, com quem teve 3 filhos;

Pela tradição peripatética – era bígamo, porquanto casado com Xantipa e com Mirto (neta de Aristides o Justo).

Sócrates era feio, tal como um sileno: Teeteto 143e e Banquete II 19, v. 5-7.

àPlatão o apresenta como aluno do sofista Pródico (Protágoras 341a; Mênon 96d; Crátilo 384b).

àDiógenes Laércio – coloca Anaxágoras e Arquelau como mestres de Sócrates (Fédon 96a-99d).

  • Xenofonte – Sócrates não era pobre. Pobreza não consiste na modéstia dos meios de subsistência, mas, sobretudo, na relação deficitária do ter em relação às necessidades.                                                                      
Processo (movido por Meleto, Lícon e Ânitos) $\left\{\begin{array}{ll}1. \hspace{1mm} Não \hspace{1mm} crer \hspace{1mm} nos \hspace{1mm} deuses \hspace{1mm} da \hspace{1mm} cidade; \\ 2. \hspace{1mm} Introduzir \hspace{1mm} novas \hspace{1mm} divindades; \\ 3. \hspace{1mm} Corromper \hspace{1mm} a \hspace{1mm} juventude. \end{array}\right\}$
                                                           

* Divergência entre intérpretes $\left\{\begin{array}{ll}1. \hspace{1mm} Consideram \hspace{1mm} esses \hspace{1mm} 3 \hspace{1mm} pontos \hspace{1mm} da \hspace{1mm} acusação \hspace{1mm} como \hspace{1mm} sendo \hspace{1mm} os \hspace{1mm} verdadeiros \hspace{1mm} motivos \hspace{1mm} \\ para \hspace{1mm} o \hspace{1mm} processo; \\ 2. \hspace{1mm} Consideram \hspace{1mm} o \hspace{1mm} contrário, \hspace{1mm} que \hspace{1mm} esses \hspace{1mm} pontos \hspace{1mm} encobrem \hspace{1mm} os \hspace{1mm} principais \hspace{1mm} agravos, \hspace{1mm} \\ de \hspace{1mm} natureza \hspace{1mm} política. \end{array}\right\}$
             
1. Não crer nos deuses ou não os honrar?

Sócrates não crê nos relatos fabulosos que os poetas espalham sobre os deuses (Eutifron 6a-c; República II 377s-III 408c). Ele crê em deuses purificados de todos os vícios e de todos os defeitos que lhes atribui uma tradição poética que ele considera mentirosa. 

* Discussão sobre a possibilidade de haver, ainda em vigor, em 399 a.C., um decreto de Péricles visando reprimir a impiedade.

2. Introdução de novas divindades (daimonia)

Sócrates afirmava ouvir o seu “daimon sêmeion”. Indaga-se: Por que, então, os acusadores falam de “divindades” (daimonia) e não de uma divindade (daimonion)? 

àO emprego do plural atestaria o fato de que os acusadores partilham a opinião difundida de que Sócrates é um físico que se interessa, sobretudo, pelo estudo da natureza (physis) e que não hesita em substituir os antigos deuses por novas entidades (As Nuvens, Aristófanes).

3. Corromper a juventude

Platão subordina a alegada corrupção dos jovens à impiedade, como se Sócrates incitasse os jovens a não crerem nos deuses da cidade e a honrarem, em seu lugar, novas divindades. Tal apresentação platônica parece tratar-se de um subterfúgio para eludir a dimensão política desta acusação (Apologia 23cd).

Influência, em especial, sobre: Alcibíades, Cármides e Crítias.

Xenofonte (Memoráveis) – coloca em evidência a dimensão política do processo contra Sócrates. Em resposta ao sofista Polícrates, que escreveu um panfleto denominado “Acusação de Sócrates”, publicado alguns anos após o processo.

Acusação de Sócrates – obra de Polícrates que acusa Sócrates de: 

1. Ter sido mau gênio de Crítias e Alcibíades;
2. Ter incitado seus companheiros a desprezar as instituições democráticas, inclusive o sorteio dos juízes; 
3. Tornar-se partidário da tirania. 

No total, houve 3 ondas sucessivas de acusação: As Nuvens (Aristófanes, 423 a.C.); o processo em que Sócrates foi condenado à morte (399 a.C.) e O panfleto de Polícrates. 


Ultrapassada a Panorâmica, vamos à CONTEXTUALIZAÇÃO


Sócrates (originário do burgo de Alôpekê) é o pai da filosofia no sentido de ter sido ele o primeiro a afastar-se do estudo da natureza e insistir para que a reflexão filosófica se interessasse, daí em diante, e exclusivamente, pelas “questões humanas”. Foi o 1º a convidar a filosofia a descer do céu e a instalá-la nas cidades, introduzindo-a até nos lares, impondo-lhe o estudo da vida, dos costumes, das coisas boas e más.

àOs modernos forjaram o termo “pré-socrático” para designar os filósofos que se situam antes da “revolução” socrática e que fizeram da natureza (physis) o objeto de suas investigações, ou seja, os olhos da filosofia estavam voltados para o exterior, em busca de uma explicação razoável do espetáculo mutante da natureza que nos rodeia, Sócrates deslocou este olhar para o próprio homem com a injunção délfica “Conhece-te a ti mesmo”.

Indaga-se: Por que o homem estudou a Natureza antes de ocupar-se com o “Conhece-te a ti mesmo”? 

A fim de responder a esta indagação, mister um breve retorno à Época que se pode chamar de Pré-científica, com as seguintes características:

1. Distanciamento do ser com relação ao objeto externo: em analogia com um bebê – solipsista, que aceita, sem questionar, que seu meio ambiente é parte integrante dele, até que, de repente, surge a dúvida, pois algo deve estar errado, já que o bebê percebe que o alimento não surge mais como resposta imediata à fome, sendo preciso esforço para que o meio ambiente comporte-se conforme sua vontade. Então, 1º mês de idade, percebe que há coisas exteriores a serem aduladas ou evitadas – reconhece a mãe com um sorriso. Abre-se uma brecha entre o ser e o mundo exterior. No entanto, uma coisa é notar que há coisas externas, outra é chegar à ideia de que esses objetos possuem natureza própria, estranha à do humano, e que não existem nem simpatia nem hostilidade por suas paixões e desejos. 

2. Preocupação da inteligência com as necessidades práticas: inteligência posta a serviço de estabelecer meios para alcançar fins práticos, que não podem ser alcançados de modo imediato. Ex.: Se uma banana está ao alcance de um macaco faminto, ele a pega e come; mas, se está fora de seu alcance, talvez, em lugar mais alto, ele poderá pensar em colocar caixas para, nelas subindo, alcançar a fruta em questão. Povos primitivos ainda estão neste estágio. Melanésios, v.g., denominam mato as plantas e árvores que não lhes têm especial serventia, chamando, indiscriminadamente, de “Mauna wala” os insetos e aves sem papel no cardápio ou na tradição. 

3. Crença nos poderes invisíveis, sobrenaturais, que jazem por trás dos objetos: no exemplo acima, do macaco, pode parecer que há forças benéficas e malignas que, respectivamente, dificultam o acesso à banana e proveem as caixas para que as alcance. A mitologia atende a esta necessidade de explicação ao fabricar uma história do sobrenatural, com o efeito de fixar os poderes invisíveis sob uma forma mais definida e dotá-los de uma substância mais concreta. O conhecimento do sobrenatural, que o humano acredita possuir, não sendo extraído da experiência direta comum, parece ser um conhecimento de uma ordem diferente e superior. 

Então, eis que, com Tales de Mileto (séc. VI a.C.), nasce o que se poderia denominar de “Ciência Jônica”. O surgimento da ciência significou que a inteligência tornara-se desinteressada (com relação ao item 2 supra) e, agora, sentia-se livre para viajar pelos mares do pensamento estranhos às mentes voltadas para os problemas imediatos da ação.

Conta-se que Tales, em suas viagens, percebeu que os egípcios precisavam medir a terra devido às inundações anuais do Nilo que apagavam os marcos divisórios. Então, acabou por constatar que tinham um método para calcular áreas retangulares, o que o levou a dar-se conta de que o método poderia ser generalizado para o cálculo de áreas de qualquer formato. Nasce a geometria, vale dizer: o problema – algo a ser resolvido – cedeu lugar ao teorema – algo a ser contemplado.

Astrologia converteu-se em Astronomia: Tales previu um eclipse na Ásia Menor, em 585 a.C., o que fez pela observação dos registros dos sacerdotes da Babilônia sobre os movimentos do planetas. O pensamento grego ignorou a astrologia até a fusão entre Ocidente e Oriente, com as conquistas de Alexandre.

Portanto, a Escola de Mileto representa a infância da ciência, cujo nascimento foi marcado pela negativa tácita quanto à possibilidade de coexistência de 2 tipos de conhecimento: natural (experiência) e sobrenatural (revelação), sendo reputado conhecimento apenas o natural. 

Descobre-se a Natureza (physis), ou seja, que o mundo é natural, com comportamentos imutáveis e próprios e que podem ser determinados pela razão humana, apesar de estarem além do controle humano.

Assim, o sobrenatural, concebido pela mitologia, simplesmente desaparece.

Xenófanes: “Se os cavalos e os bois tivessem mãos e conseguissem desenhar ou fazer estátuas, os cavalos representariam os deuses sob a forma de cavalos, e os bois, sob a forma de bois.”

Não existe mais o pano de fundo sobrenatural.

O pensamento se vê confrontando a Natureza, um mundo de coisas impessoais, indiferentes aos desejos do homem e que existem por si mesmas. A cosmogonia desligou-se da teogonia. O pensamento racional dissipou a bruma do mito das origens do mundo e da vida.

Demócrito: atomismo – teoria sobre a natureza física tangível. Os atomistas afirmavam que as propriedades táteis são as únicas verdadeiras; as propriedades visuais não são substanciais ou objetivas. Não estão presentes quando não se está olhando. Átomos só apresentam forma e resistência, que são propriedades tangíveis necessárias e suficientes para mostrar que algo é real. O atomismo afirma que o real – o núcleo permanente e imutável da substância – não passa de átomos se movendo num espaço vazio.

A característica essencial deste atomismo é que se trata de uma doutrina materialista. O jogo consiste inteiramente do acaso; não há qualquer inteligência controladora por trás dele.

Importante: a ciência não chegou à conclusão de que o mundo espiritual fora erroneamente concebido, mas à de que tal mundo não existia. Nada era real além do corpo tangível composto por átomos. O resultado foi uma doutrina denominada materialismo para os filósofos e ateísmo para os religiosos.

A FILOSOFIA SOCRÁTICA FOI UMA REAÇÃO CONTRA ESTA INCLINAÇÃO MATERIALISTA. ESTA FOI A REVOLUÇÃO REALIZADA POR SÓCRATES, COM SEU “CONHEÇA-TE A TI MESMO”.

* Sócrates estava convencido de que não se pode deduzir uma ética da physis, i.e., a reflexão ética obedece às suas próprias exigências e nada tem a aprender com o estudo da natureza. 

A rejeição de Sócrates às especulações sobre a Natureza assentavam-se em dois motivos, ela era:

1. Dogmática: o produto da razão pode ser tão perigosamente falso quanto o produto da imaginação produtora de mitos. Sócrates tinha um senso do que se pode e não se pode conhecer, ante a impossibilidade de se examinarem as bases do conhecimento sobre a physis. 

2. Inútil: se não se pode conhecer os inícios da vida no passado não registrado, pode-se, no entanto, conhecer os fins da vida aqui e agora. Ademais, o passado não pode ser mudado, afigurando-se o futuro como o reino da contingência e da liberdade. 

Então, considerando o futuro e suas possibilidades, é preciso que não se viva, dia após dia, arquitetando-se meios para atingir fins estabelecidos, sem que se pergunte se vale a pena viver para atingir esses fins.

Assim, a felicidade surgiria como um fim comum, ao qual outros fins estariam subordinados.

Indaga-se: O que é a felicidade?

Eis o debate: a) felicidade como prazer; b) felicidade como honra e fama (sucesso social); c) felicidade como sabedoria e d) felicidade como combinação de tudo isso.

Sócrates afirmava que a felicidade devia ser encontrada no que ele chamava de perfeição da alma, vale dizer, tornar a alma tão boa quanto possível.

Neste ponto, antes de passar adiante, importa dizer que, dentro do referido comparativo do pensamento humano com as fases da vida de uma pessoa, os jônicos do séc. VI a.C. haviam alcançado o início da adolescência, período em que o solipsismo do recém-nascido já foi abandonado, bem como já se deixou de acreditar que contos de fada são verdadeiros. E, com a adolescência, a infância finda com a crise mais revolucionária da vida humana. Trata-se do segundo esforço de desligamento, mais consciente e mais doloroso, pois a principal preocupação do adolescente é o desligar seu ser individual do ser dos pais e do grupo familiar ou de qualquer outro grupo social que pretenda dominar sua vontade e moldar-lhe a personalidade. O indivíduo precisa se descobrir como ser moral que deve aprender a manter-se sobre seus próprios pés. Esta época é a dos sofistas.

Antífon: sofista que estabelece contraste entre as leis do Estado e a lei da Natureza, sendo esta reputada como o princípio da autopreservação, de tal sorte que cada indivíduo deveria procurar o que é vantajoso para a vida e, consequentemente, agradável. As leis do Estado, de outro turno, prescrevem um comportamento desagradável e, portanto, antinatural. O homem, naturalmente forte, sob o jugo das leis do Estado, é como um leão preso numa rede de proibições e restrições.

A partir daí, Sócrates tecerá sua filosofia. 



A QUESTÃO SOCRÁTICA: o que se pode afirmar sobre o Sócrates histórico?

O problema das fontes

Principais fontes $\left\{\begin{array}{ll} Aristófanes; \\ Platão; \\ Xenofonte; \\ Aristóteles .\end{array}\right\}$

Schleiermacher (1818) – rejeita em bloco as principais características da representação tradicional do filósofo Sócrates. Faz 2 críticas a Xenofonte: 1. Não era filósofo; 2. Expõe Sócrates como um arauto dos valores tradicionais.

Taylor e Burnet (1911) – o Sócrates histórico corresponde totalmente ao Sócrates de Platão. Tal posicionamento decorre da refutação a Xenofonte.

Ceticismo sobre a questão socrática – nasceu na Alemanha, no final do séc. XX, retomando Joël (1895). Diz respeito ao caráter ficcional dos diálogos socráticos (logoi sokratikoi).

Xenofonte e Platão – nunca tiveram como projeto a reconstrução fiel do pensamento socrático, sendo que suas narrativas resultam de um gênero literário, o logos sokratikos, que é explicitamente reconhecido por Aristóteles.

  • Assim, o logos sokratikos não deve ser lido nem interpretado com um documento histórico no sentido estrito, mas, antes, como uma obra literária. Eis aí, pois, a perda de objeto da questão socrática.
Sobre as fontes, Xenofonte divorcia-se de Platão, e Aristóteles não representa uma fonte independente, afinal: 1. Seu testemunho depende quase que totalmente dos diálogos platônicos; 2. Ele interpreta Sócrates em função de seus próprios interesses filosóficos.

Sócrates em Aristófanes

É preciso lembrar que as Nuvens é o único testemunho sobre Sócrates enquanto ele ainda vivia, e que, na época de sua redação (423 a.C.), Platão (428-348 a.C.) e Xenofonte (430-355 a.C.) ainda eram crianças.

à Se considerarmos Sócrates como aluno de Arquelau e Anaxágoras, não é absurdo imaginar que Sócrates, numa primeira etapa de sua “carreira”, possa ter-se consagrado ao estudo da natureza (physis).

Sócrates de Platão

Obras de Platão



Pode-se identificar 10 temas a respeito dos quais as posições defendidas pelo Sócrates dos diálogos de juventude são diametralmente opostas ao do Sócrates dos diálogos da maturidade (Cf. Vlastos 1994, cap. 2: “Sócrates contra Sócrates em Platão”, p. 69-116).

LEIS – único diálogo em que Sócrates está ausente.
  • Parece abusivo e ilegítimo reservar a denominação de “socráticos” aos diálogos de juventude, na medida em que eles não são mais “socráticos” do que os diálogos da maturidade e que colocam Sócrates em cena. Entretanto, há os seguintes argumentos que tentam explicar o porquê de tal denominação:
  1. Dizem respeito ao pensamento do Sócrates histórico; 
  2. Sócrates neles desempenha um papel mais ativo e determinante que nos demais diálogos; 
  3. Compreendem um número maior de temas socráticos, ou seja, temas que eram igualmente expostos e discutidos pelos autores dos logoi sokratikoi, em especial, Xenofonte, i.e., questões éticas e políticas, ao passo que os temas discutidos no Platão da maturidade são ontologia, metafísica, epistemologia e matemáticas.
Filosofia Socrática – Sócrates considera que a divindade confiou-lhe uma missão, a de fazer com que os homens reconhecessem a ignorância que abrigam dentro de si, sem o saber, e que os impede de tornarem-se melhores.

àA declaração de ignorância é, sem dúvida, um dos traços pelos quais o Sócrates de Platão mais se opõe ao de Xenofonte, já que neste, como adiante se verá, não há tal declaração.

Sobre a Declaração de Ignorância: esta declaração, por certo, não se estende a todas as coisas, já que Sócrates sabe que é casado, que é homem etc. Portanto, esta alegada ignorância refere-se aos temais mais importantes, aqueles que dependem da ética.

Indaga-se: Será que Sócrates ignora mesmo os temas éticos? A resposta a esta indagação produzirá reflexos diretos na questão da aporia dos diálogos.

àSob o pretexto da ignorância, Sócrates está assegurado de que jamais terá que responder por uma posição – ele não defende nenhuma – e que estará sempre no direito de ocupar a posição daquele que interroga, pois não é necessário saber para testar ou provar o fundamento de uma pretensão ao saber (vide República I 337e).

àEntão, tem-se uma dissimulação da própria ignorância.

Ironia Socrática 

1. Ele dissimula a própria ignorância; 

Duplo artifício $\left\{\begin{array}{ll}1. \hspace{1mm} Ele \hspace{1mm} dissimula \hspace{1mm} a \hspace{1mm} própria \hspace{1mm} ignorância; \\ 2. \hspace{1mm} Finge \hspace{1mm} reconhecer \hspace{1mm} o \hspace{1mm} saber \hspace{1mm} que \hspace{1mm} seu \hspace{1mm} interlocutor \hspace{1mm} tem \hspace{1mm} a \hspace{1mm} pretensão \hspace{1mm} de \hspace{1mm} possuir. \end{array}\right\}$

* Sobre a dissimulação, ex vi Apologia 19d, 33a; Hípias Menor 369d-e, 372a-c; Hípias Maior 286c.

Interessante: No Lísis, Sócrates pretende mostrar a Menexeno, que se diz amigo de Lísis, que ele, Menexeno, nada sabe sobre a amizade. E como procede Sócrates para alcançar seu intento? Pois bem, primeiramente, busca agradar a Menexeno, de tal sorte a incitá-lo a responder suas perguntas. Então, Sócrates o elogia, atribuindo-lhe um saber sobre a amizade, ao mesmo tempo em que se reconhece ignorante no tema, alegando que tal ignorância se deve ao fato de não ter amigos (211d-212a). Ora, não só é falso que Sócrates não tinha amigos, como Sócrates sabia muito bem em que consiste a amizade, já que acabara de explicar a Lísis (207d-210e), numa discussão não presenciada por Menexeno (207d a 211a).

àAos que se recusam a considerar que a declaração de ignorância seja uma dissimulação, cabe esclarecer o grande número de passagens em que Sócrates reivindicou, abertamente, um saber no domínio das coisas mais importantes. Indaga-se: Como pode Sócrates declarar-se, ao mesmo tempo, ignorante e ostentar tantos conhecimentos morais?

Exemplos

1. No texto (Apologia) em que a Pítia (Pitonisa) o proclama o mais sábio dos homens, justamente porque ele é o único que reconhece a própria ignorância, Sócrates sabe:

a) que aquele que corrompe um homem se expõe a sofrer dele um dano (25e); 
b) que é mau e vergonhoso cometer a injustiça e desobedecer a alguém melhor que ele mesmo (29b); 
c) afirma que a virtude não vem das riquezas, mas que, ao contrário, é da virtude que vem a riqueza e todos os outros bens (30b); 
d) considera não ser permitido que um homem de valor sofra um dano da parte de quem não tem o mesmo valor (30d); 
e) afirma que não foi injusto com ninguém, já que nunca propôs algo que ele sabe ser um mal (37b); 
f) apresenta, como verdade, “que nenhum mal pode atingir um homem de bem, nem durante sua vida nem depois da morte, e que os deuses não se desinteressam de sua sorte” (41c-d) 

2. Além da Apologia, extrai-se, ainda: 

a) afirma que a alma é muito mais preciosa que o corpo e que jamais é bom, tampouco belo, cometer a injustiça (Críton 49a); 
b) afirma ser impossível ser feliz quando se vive no mal e na injustiça (Górgias 470e, 472c-d, 473a, 479e, 507c, 512b); 
c) afirma ser melhor sofrer uma injustiça que cometê-la (Górgias 469b-c, 474b, 475e, 508e; República I 353e – 354a); 
d) afirma que a melhor defesa é não cometer nenhuma injustiça (Górgias 522d); 
e) afirma que a justiça é mais forte do que a injustiça (República I 351a). 

àPara conciliar as numerosas passagens nas quais Sócrates se declara ignorante com as não menos numerosas passagens em que reivindica conhecimentos no domínio moral, os intérpretes que acreditam na sinceridade da declaração de ignorância propõem:
  1. Distinção entre “saber” e “conhecer” – o saber que Sócrates recusa atribuir-se é um conhecimento certo e infalível, enquanto que o saber que lhe acontece mostrar não seria nada mais do que conhecimentos não definitivos que ele subscreve provisoriamente, na medida em que eles ainda não foram refutados (G. Vlastos), vale dizer: o saber exposto por Sócrates consiste em diferentes proposições sujeitas a discussão e que jamais foram derrubadas por seus interlocutores, de modo que ele se acha autorizado a defendê-las até que seja demonstrado que não tem razão em dar-lhes fé (Górgias 509a, 527b).
Refutação a este argumento:
  • à Os conhecimentos que Sócrates se atribui não consistem sempre em proposições que sobreviveram ao elenchos (refutação); 
  • à Sócrates jamais expôs este gênero de distinção (saber x conhecer) entre diferentes graus de conhecimento; 
  • à Às vezes, Sócrates garante ser impossível que algo seja diferente do que ele afirma ser (Górgias 472d), ou, ainda, que sua posição é irrefutável, porquanto ela corresponde à verdade (Górgias 473b, 508b; República I 335e).
àIsso tudo dá a entender que Sócrates está certo de possuir um conhecimento definitivo, e não meramente provisório.

MAS, outro argumento:
  1. Não se pode negligenciar as passagens nas quais Sócrates atribui aos deuses a fonte de alguns conhecimentos que ele externa no campo moral. 
Exemplos: 
  • Coisas do amor (Lísis 204c; Banquete 177d, 198d; Fedro 257a); 
  • Sobre a alma, seus conhecimentos lhe teriam sido transmitidos pelos médicos do deus Zalmóxis (Cármides 156c – 157c); 
  • Conclui, do fato de seu sinal divino não ter intervindo para interromper o curso de seu processo, que sua condenação à morte não é um mal (Apologia 40 a.C.).

àEntão, por este viés, se Sócrates sabe algo, não deve tal saber a si mesmo, mas aos deuses, únicos verdadeiros detentores da sophia, o que, em tese, permite conciliar sua declaração de ignorância com seus saberes.

TODAVIA, como, na grande maioria dos casos, ele não atribui qualquer origem divina aos conhecimentos que expõe, há boas razões para crer que sua declaração de ignorância é uma hipocrisia, afinal, se Sócrates nada sabe, exceto, precisamente, que reconhece nada saber, ele não pode, em princípio, propor a seus interlocutores uma definição de que esteja certo.

Sócrates a serviço da divindade e a autonomia da filosofia

Dentro da perspectiva de que Sócrates estava a serviço da divindade, que o iluminava com determinados saberes, é de se indagar sobre a autonomia da filosofia em relação à divindade.

àA favor da autonomia – ex vi Críton 46b: “Sou homem, como vês (e não somente hoje pela primeira vez, mas todo o tempo), que não dá seu assentimento a nenhuma regra de conduta que, quando aplico a ela meu raciocínio, não se revele a mim como sendo a melhor”.

Autonomia: no sentido de reconhecer unicamente, como normas de ação, as prescrições que satisfazem às exigências da razão.

NO ENTANTO, será que se pode falar em autonomia, no sentido forte do termo, diante do fato de Sócrates aceitar, de pronto e sempre, uma intervenção divina, mesmo sem considerar que a razão possa colocar em dúvida, contestar ou até rejeitar tal intervenção?

  • Na medida em que a interpretação dada por Sócrates acerca da intervenção do sinal divino se efetua sob a égide da razão e deve satisfazer às exigências da razão, pode-se afirmar que este momento exegético está de acordo com o racionalismo de Sócrates, PORÉM, nem por isso a razão é soberana, pois se mostra dócil e obediente a um sinal divino cujas intervenções ela nunca contesta. 
  • Sócrates raciocina a partir da intervenção divina, cujo significado ele tenta descobrir, mas não contesta jamais a própria intervenção.
àDesse modo, considerando que Sócrates aceita, sem discussão, intervenções divinas, algumas das quais decidiram o próprio curso de sua vida, parece impossível sustentar o caráter autônomo de sua ética (ex vi Apologia 31d).

NOTA: Platão e Xenofonte jamais falam do “demônio” (daimon) de Sócrates, mas, antes, da divindade (daimonion) que se dirige a ele por intermédio de um sinal. A associação do sinal divino a um “daimon”, que é uma forma de divindade intermediária entre os homens e os deuses, só ocorreu no séc. II d.C., à época do médio platonismo, por Plutarco, Máximo de Tiro e Apuleio.

Diante de todo o exposto, como já sinalizado alhures, indaga-se: São mesmo aporéticos os diálogos levados a efeito por Sócrates?

1. Sócrates sabe muito mais sobre a natureza da virtude do que ele está disposto a admitir; 

2. Platão apresenta Sócrates como um modelo de virtude. 
    Ora, como virtude é conhecimento (um dos paradoxos socráticos)
            e como Sócrates afirma ser ignorante,
            não deveria, por conseguinte, ser virtuoso 

3. Sócrates vangloria-se de sempre manter a mesma linguagem sobre os mesmos temas (Górgias 490e) e de assemelhar-se, neste aspecto, à própria filosofia (Górgias 482a). 
Ora, é próprio da ignorância jamais dizer a mesma coisa sobre o mesmo tema; 
        é próprio da ignorância ter opiniões errantes (Sofista 230b) 
        então, se Sócrates se proclama ignorante, eis aí uma contradição.

àA comprovada constância em suas posições é um indício de seu saber.

àPlatão refugia-se por trás da declaração de ignorância para compor diálogos falsamente aporéticos.

Sobre o método socrático: Elenchos x Maiêutica

O elenchos tinha a seguinte estrutura lógica: 
  1. o respondente defende uma tese "p", que passa a ser alvo da refutação; 
  2. Sócrates percebe que o respondente concorda com as premissas "q" e "r", que são aceitas sem discussão; 
  3. Sócrates mostra, e o respondente reconhece, que "q" e "r" acarretam não-p; 
  4. Sócrates afirma que "p" foi demonstrado falso e não-p verdadeiro. 
Importa perceber que, logicamente, tudo o que Sócrates provou foi que a tese inicial é incompatível com a conjunção de premissas acordadas, mas não que não-p não fosse verdadeiro. 

De todo modo, o elenchos se dirige a um interlocutor que se acha sábio, mas que, na verdade, é ignorante, ao passo que a maiêutica, que é uma construção platônica no Teeteto, visa, ao contrário, revelar a interlocutores, que se acham ignorantes, que eles são, na verdade, sábios. Operou-se, portanto, uma inversão. 

No Teeteto, o retrato de Sócrates transforma-se ao sabor da evolução do pensamento de Platão, que associa, pela reputação, o nome de Sócrates à maiêutica, dando, assim, base à sua doutrina da reminiscência, afinal, as almas que Sócrates ajuda a nascer estão “grávidas” de conhecimentos que elas contemplaram e adquiriram antes de sua queda num corpo e que elas abrigam sem o saber, porque os esqueceram quando foram fixadas a um corpo. 

Assim, aos 3 elementos essenciais do retrato de Sócrates, quais sejam: 1) declaração de ignorância; 2) afirmação segundo a qual jamais instruiu alguém e 3) missão que lhe foi confiada pela divindade, Platão introduziu um 4º elemento: a função de parteiro, que está ausente dos diálogos ditos da juventude. 

Portanto, enquanto a missão de Sócrates, na Apologia, consiste em examinar o outro, com a ajuda do elenchos, a fim de revelar-lhe a ignorância, sua “nova” missão, no Teeteto, consiste, agora, em fazer nascer as almas, ajudando-as a descobrir em seu seio os conhecimentos que elas abrigam sem o saber. 

Os paradoxos socráticos 

Denominam-se paradoxos socráticos as posições éticas por ele defendidas na contramão do senso comum do grego daquela época. Podem-se citar 5 paradoxos como sendo os principais: 

  1. A virtude é um conhecimento; 
  2. Ninguém faz o mal voluntariamente; 
  3. As virtudes constituem uma unidade; 
  4. É preferível sofrer injustiça a cometê-la; 
  5. Jamais se deve responder à injustiça com a injustiça, nem fazer mal a outrem, nem mesmo àquele que lhe fez mal. 
Dentre tais paradoxos, o primeiro é de especial importância. Os gregos consideravam que a virtude era um dom divino, ou, ainda, que ela era natural, ou, ao contrário, que ela era o fruto do exercício, mas era incomum considerar, como Sócrates, que ela era um conhecimento que, uma vez adquirido, bastava para tornar-se virtuoso. 

Ora, se a virtude é um conhecimento, não se tem certeza alguma de que se está a levar uma vida boa enquanto permanecer na ignorância da natureza da virtude. Portanto, é urgente definir as diferentes virtudes, porquanto a definição é justamente o enunciado do conhecimento em que consiste cada virtude particular. 

Na opinião de Aristóteles, Sócrates foi o primeiro a tentar descobrir definições universais das diferentes virtudes morais (ex vi Metafísica M 4, 1078 b 17-19). 

Importante notar que, a partir do saber, como garantia do sucesso de uma atividade técnica, Sócrates está convencido de que o saber também serve de garantia de êxito da ação na esfera ética e política. Veja, v.g., Górgias (460 a-b): assim como basta estudar medicina para ser médico, ou arquitetura para ser arquiteto, assim aquele que aprendeu a justiça, forçosamente é justo. 

De todo modo, Sócrates considerava haver diferenças no ergon (efeito/produto) oriundo da técnica e no decorrente da virtude. 

1ª diferença – o saber técnico é uma condição necessária para o êxito da ação, ao passo que o saber moral é, além de uma condição necessária, também suficiente (ex vi Hípias Menor – 371e-376c). Portanto, a competência técnica é condição necessária, mas não suficiente, afinal, aquele que conhece a justiça não pode agir com injustiça, e é precisamente por isso que o saber moral, à diferença do técnico, é uma condição necessária e suficiente para garantir o sucesso da ação. 

2ª diferença – o saber técnico está subordinado ao saber moral. O conhecimento do bem e do mal desapruma o saber técnico que não sabe determinar, com segurança, se o resultado que ele produz é realmente um bem. Vide Cármides (173 a-d) – uma cidade regida pela exigência da competência técnica não tem a garantia de conhecer a felicidade. Sócrates rejeita uma cidade tecnocrática, onde o único imperativo fosse o da competência. 

3ª diferença – o saber técnico pode ser objeto de ensinamento, ao passo que não é certo que a virtude possa ser ensinada, não obstante seja um saber. Políticos reputados virtuosos não foram capazes de ensinar a virtude a seus filhos. Todavia, a impotência dos políticos para tornar melhores seus filhos e seus concidadãos talvez se deva ao fato de eles não serem realmente virtuosos. 

_ O segundo paradoxo, segundo o qual ninguém faz o mal voluntariamente, decorre do primeiro, porquanto sendo a virtude um conhecimento, e como o conhecimento da virtude acarreta necessariamente uma ação que lhe é conforme, segue-se que aquele que faz o mal o faz por ignorância e contra sua vontade. Sócrates se recusa admitir que se possa fazer o mal com conhecimento de causa. Para ele, os homens nunca escolhem o mal pelo mal (Górgias 468 a-c; Mênon 77c-78b) e fazem sempre o que lhes parece ser um bem. Todavia, por vezes ocorre ao homem, em razão de sua ignorância do verdadeiro bem, tomar por um bem real o que não é senão um bem aparente. Portanto, pode-se dizer que a ética socrática é intelectualista. 

_ Sócrates insurge-se contra a opinião comum, segundo a qual o saber não possui qualquer força, nem de direção, nem de comando, e pode ser facilmente neutralizado e revertido por impulsos irracionais (cf. Protágoras 352b). Para ele, o saber não é inerte, mas possui uma força que lhe permite determinar, soberana e infalivelmente, a ação humana (cf. Protágoras 352c). 

_ Assim, Sócrates nega o problema da akrasia. O fato de ser vencido pelo medo, pela cólera ou pelo desejo, na verdade, não mais é que ignorância (cf. Protágoras 358c, 359d). Portanto, para Sócrates, a ignorância é não apenas um mal (cf. Górgias 477b; Eutidemo 281e), mas o maior dos males (Górgias 458a-b). 
  • Importante notar que não apenas a akrasia é rechaçada por Sócrates, como, também, a enkrateia (compreendida como o domínio de si), já que o conhecimento é a condição necessária e suficiente para que se adote uma conduta virtuosa. Então, da negação da akrasia decorre, necessariamente, a inutilidade da enkrateia, porquanto se a akrasia é impossível quando o saber está presente, a enkrateia é supérflua. Não é por acaso que há uma reconciliação do Sócrates de Platão com a enkrateia a partir do momento em que Platão, na República, desenvolve uma concepção tripartida da alma, em função da qual reconhece, daí em diante, a possibilidade da akrasia, visto que nada impede que um homem dominado pelos desejos, que habitam a parte inferior da alma, aja ao contrário de seu conhecimento do bem. Ora, se o saber não basta mais para garantir uma conduta virtuosa, a enkrateia encontra sua razão de ser, que é a de secundar o saber e a razão (República IV 430e-431b). Portanto, depois de ter ignorado a enkrateia nos diálogos da juventude, sob o pretexto de que ela era inútil, já que bastava o saber, Platão com ela se reconcilia, atribuindo-lhe importância. 

  • Ao contrário do Sócrates de Xenofonte, que atribui à enkrateia um estatuto privilegiado, o de fundamento da virtude (Memoráveis I, 5,4), o Sócrates, dos diálogos da juventude de Platão, não lhe atribui nenhum papel. 

_ O terceiro paradoxo, consubstanciado no entendimento de que as virtudes constituem uma unidade, trata-se de um paradoxo porque para a grande maioria dos contemporâneos de Sócrates é possível possuir algumas virtudes, mas ser desprovido de algumas outras, de modo que alguém poderia ser piedoso e negligente ao mesmo tempo. Sócrates, ao contrário, acha que é impossível possuir uma virtude independentemente das outras, já que o saber, que serve de fundamento a cada uma delas, é essencialmente o mesmo, qual seja, o conhecimento do bem e do mal (Laques 197e-199e). Como a virtude é um saber e o conhecimento do bem e do mal cobre, necessariamente, tudo o que importa saber no domínio ético, este conhecimento é a fonte de todos os outros. 

O Sócrates de Xenofonte 

Escritos socráticos de Xenofonte: Memoráveis, Banquete, Econômico e Apologia. 

Diferenças

Sócrates de Platão
Sócrates de Xenofonte
1. Pretende-se ignorante e busca, em vão, definir as virtudes
Não se declara ignorante e está em condições de definir as virtudes (Memoráveis I 1,16; III 9; IV 6)
2. Está engajado numa busca sempre recomeçada
Jamais dá a impressão de estar à busca de uma resposta ou de uma solução a um problema que ele se propõe
3. Apresenta-se como aluno de seu interlocutor e diz que nunca foi mestre de ninguém (Apologia 19d, 33a)
Reconhece abertamente que ensina e que é um expert em educação (Memoráveis I 6, 13-14; IV 2, 40; IV 3, 1; IV 7,1 e Apologia 20)
4. A política é um verdadeiro saber moral de vocação arquitetônica, no caso do conhecimento do bem e do mal que desapruma as diferentes técnicas, na medida em que ela fixa as finalidades que elas devem perseguir para o bem da cidade (Cármides 174 b-c)
A política é uma técnica como outra qualquer. É uma simples competência técnica que se pode adquirir com um mestre reconhecido (Memoráveis III 6-7; IV 2, 2-7)
5. Não reconhece que ensina política aos jovens e pensa ser o único a fazer política, no sentido de ser o único a preocupar-se em tornar melhores os seus concidadãos (Górgias 521d)
Admite, sem rodeios, que forma jovens para a política (Memoráveis I 2, 17-18; I 6, 15; IV 3, 1)
6. É completamente indiferente às condições de prosperidade material. Considera que a única tarefa do bom cidadão é tornar melhores (virtuosos) seus concidadãos (Górgias 517 b-c)
Atribui grande importância à economia em geral e às condições de prosperidade material (Memoráveis II 7; III 4, 6-12). A tarefa do bom cidadão é enriquecer a cidade (Memoráveis III 6, II 7,2 e IV 6-14)
7. É muito crítico sobre os grandes dirigentes atenienses de seu tempo, em particular Péricles e Temístocles (Górgias 503 c-d, 517 b-c)

Ao contrário, consagra-lhes o maior respeito (Memoráveis II 6, 13; Banquete VIII 39)
8. É estranho à busca das honras e prega a renúncia a esta forma de ambição (Górgias 526d, República I 347 b, Fédon 82c)
É muito sensível à glória e ao renome, incentivando aqueles que aspiram às honrarias (Memoráveis I 7,1; III 3, 13-14; III 7,1)                                                      
9. Conhecer-se a “si mesmo” corresponde à alma e que é preciso viver em função dos bens da alma, muito mais que em função dos bens do corpo e dos bens exteriores (Alcibíades 129 d-133d)
O conhecimento de si mesmo consiste em reconhecer a extensão e os limites de sua própria dynamis, ou seja, de sua capacidade no plano técnico (Memoráveis I 7, 4; III 7; IV 2, 25-29)
10. Identifica a virtude com um conhecimento, não reconhecendo que se possa perdê-la.
Considera a virtude como fruto do exercício (askêsis) e que se pode perdê-la logo que se deixa de treinar (Memoráveis 12, 19-29, ; II 1,20; II 1, 28; II 6, 39; III 3, 6; III 5, 13-14; III 9, 1-3)
11. Interessa-se pelo cuidado da alma muito mais que o cuidado com o corpo (Apologia 29e, Alcibíades 132c, Cármides 156d-157c, Fédon 107c)
Na medida em que a força física é indispensável à aquisição e ao exercício da virtude, dá muita importância ao cuidado do corpo e se interessa muito pouco pelo cuidado da alma (Memoráveis I 2, 4 e III 12)
12. Afirma que jamais se deve fazer mal a alguém, nem mesmo para revidar o mal sofrido
Considera que a virtude de um homem consiste em fazer bem a seus amigos e mal a seus inimigos (Memoráveis II 1, 28; II 2,2; II 3, 14; II 6, 35; IV 2, 15-17)
13. Submete seus interlocutores ao elenchos, em especial, nos diálogos da juventude
Faz uso de outro tipo de discurso que não o elenchos (Memoráveis I 4, 1)
14. Célebre por sua natureza desconcertante (atopia), que tem por efeito confundir e desorientar seus interlocutores
Raramente é imprevisível e, com exceção de seu primeiro diálogo com Eutidemo, ele jamais faz seus interlocutores caírem no embaraço (Memoráveis IV 2)
15. Considera-se investido de uma missão pelo deus de Delfos, a missão de viver filosofando
Não se reconhece investido de nenhuma missão dessa natureza, tampouco vê, no exercício da filosofia, concebida como o exame de si mesmo e do outro, um ato de piedade e um engajamento a serviço da divindade. Sua concepção de piedade é, em linhas gerais, a da tradição (Memoráveis I 3, 1; IV 3, 16; IV 6, 2-4)
16. O sinal divino (daimonion) jamais intervém a favor dos amigos de Sócrates e nunca indica o que ele deve fazer, mas apenas se manifesta para impedi-lo de começar o que está prestes a fazer (Apologia 31d, 40a; Eutidemo 272e; Fedro 242b-c)
O sinal divino (daimonion sêmeion) indica, para o próprio bem de Sócrates, e de seus amigos, o que deve fazer e o que deve evitar (Memoráveis I 1, 2-5; I 4, 15; IV 3, 12; IV 8, 1; Apologia 12-13)
17. Sócrates não assimila o sinal divino, pura e simplesmente, aos outros processos divinatórios, ainda que veja nele uma forma particular de vaticínio (Apologia 40a; Fedro 242c)
Vê no sinal divino um modo de adivinhação com qualquer outro (Memoráveis I 1, 2-5; I 4, 15; IV 3, 12; Apologia 12-13)
18. Recusa-se a considerar que os deuses possam ser a causa de um mal (República II 379b)
Reconhece que os deuses têm o poder de fazer mal aos homens (Memoráveis I 4, 16)

* A principal diferença, todavia, está na questão da akrasia e da enkrateia. 

Pois bem, Xenofonte, em Memoráveis I 2, assevera: 

“O que me assombra é que alguns pudessem ter-se deixado convencer de que Sócrates corrompia a juventude; antes de mais nada, além do que já foi dito, ele se dominava mais do que qualquer outro homem (pantôn anthrôpôn enkrastestatos) no que diz respeito aos prazeres do amor e do ventre; depois, ele era mais resistente (karterikôtatos) ao frio, ao calor e às fadigas de todo tipo; além disso, ele se havia habituado a viver modestamente, de modo que, mesmo possuindo muito poucas coisas, dispunha comodamente do suficiente (arkounta). 

Há 3 qualidades nesta passagem $\left\{\begin{array}{ll}1. \hspace{1mm} Enkrateia \hspace{1mm} – \hspace{1mm} domínio \hspace{1mm} de \hspace{1mm} si \hspace{1mm} mesmo \hspace{1mm} em \hspace{1mm} relação \hspace{1mm} aos \hspace{1mm} prazeres \hspace{1mm} corporais; \\ 2. \hspace{1mm} Karteria \hspace{1mm} – \hspace{1mm} resistência \hspace{1mm} em \hspace{1mm} relação \hspace{1mm} às \hspace{1mm} dores \hspace{1mm} físicas; \\ 3. \hspace{1mm} Autarkeia \hspace{1mm} – \hspace{1mm} autossuficiência. \end{array}\right\}$

  • Esta tríade forma o núcleo da ética socrática em Xenofonte (Memoráveis: I2, 14; I2,60; I3, 5-14; I5, 1; I5, 6; I6, 6-10; II 1; III 14; IV 5, 9; IV 7, 1; IV 8, 11; Apologia 16; Banquete IV 43). 
  • Importa notar que os elementos dessa tríade não estão em pé de igualdade, mas formam uma hierarquia, em que os 2 primeiros elementos concorrem para a realização do terceiro (Memoráveis I 6 – diálogo entre Sócrates e Antifão); 
  • Sócrates, em Xenofonte, chega a afirmar que a enkrateia é o “fundamento da virtude” (Memoráveis I 5, 4). A enkrateia aparece claramente como a condição prévia à aquisição da virtude e fonte de toda utilidade
Utilidade proteiforme da enkrateia: 

1. Indispensável a quem exerce o poder, já que dominar-se a si mesmo é condição prévia a quem governará os outros (Memoráveis I 5, 1; II 1, 1-7); 

2. É condição da liberdade, pois a pior escravidão é, necessariamente, a do homem subjugado às suas paixões e dominado pelos prazeres, uma vez que, em tal cenário, não mais dispõe da liberdade necessária à busca do bem e da virtude (Memoráveis I 5, 5; IV 5, 2-6; Econômico I 17-23; Apologia 16); 

3. É condição da justiça, já que a falta de enkrateia conduz à cobiça e a apropriar-se dos bens alheios (Apologia 16; Memoráveis IV 2, 38); 

4. É condição indispensável da amizade (Memoráveis II 6, 1). Sem enkrateia, trata-se o outro como meio, um simples instrumento para saciar os próprios desejos e obter prazer (Memoráveis II 1, 1-20 – diálogo entre Sócrates e Aristipo). A verdadeira amizade só é possível entre homens virtuosos e, portanto, senhores de si mesmos; 

5. É condição da riqueza e da prosperidade. Se não houver enkrateia, o dinheiro será inevitavelmente dilapidado para a satisfação dos desejos (Memoráveis I 2, 22; I 3, 11; Econômico II 7); importante destacar que a opinião, segunda a qual Sócrates não se interessava por economia, provém, se dúvida, da Apologia platônica, onde Sócrates reconhece ser pobre (23b-c, 31c, 36d), bem como que negligenciou seus próprios negócios e a administração de sua casa (31b, 36b). O Sócrates de Xenofonte, ao contrário, não só não é pobre, como não pode permitir-se afirmar que negligenciou, por pouco que seja, a gestão de seus negócios domésticos. Sócrates não é pobre, pois possui mais do que necessita para viver (Econômico II 2-10 e XI 3; Memoráveis IV 2, 37-39). A riqueza e a pobreza não dependem da soma de dinheiro de que se dispõe, mas da limitação das necessidades. É preciso saber lidar com a própria econômica para poder bem administrar a polis. 

6. É condição para o exercício da dialética. A dialética socrática, em Xenofonte, não é a dicotômica que Platão põe no Sofista e no Político, que consiste em dividir um gênero para se chegar a uma definição. Trata-se, em Xenofonte, da aptidão para subsumir um conceito ou uma ação ao bem ou ao mal, que são categorias. Então, a aptidão para distinguir o bem e o mal, na ordem do discurso e da ação, é exclusivo de quem domina a si mesmo (enkrateia). Eis uma passagem: “Só os homens que se dominam são capazes de examinar, em todas as coisas, aquelas que são as melhores; selecionando-as (dialegontas) em atos e em palavras segundo seus gêneros (kata genê), eles escolhem o bem e se abstêm do mal” (Memoráveis IV 5, 11). 

  • Sócrates(x) distingue-se de Sócrates(p) também com relação à autarcia. Como Sócrates(p) se declara ignorante e está, incansavelmente, à busca do saber e da virtude, que cumulariam, enfim, sua aspiração ao bem, ele não pode ser autárcico. 
Sócrates de Aristóteles 

Aristóteles nasceu cerca de 15 anos após a morte de Sócrates. 

Sua narrativa sobre Sócrates compõe-se de: 
  • 34 passagens curtas, extraídas de obras conservadas; 
  • 7 fragmentos de obras perdidas (textos reunidos, traduzidos e comentados por Deman (1942). 
O interesse nos textos aristotélicos sobre Sócrates reside no fato de que neles se encontra uma apreciação crítica da filosofia socrática. Aristóteles assume clara posição, seja para aprová-lo ou reprová-lo. 

Aristóteles coloca a contribuição de Sócrates mais no campo da epistemologia que no da ética. Assenta: “Há duas descobertas, com efeito, entre as quais se poderia, com todo direito, atribuir o mérito a Sócrates: o discurso indutivo e a definição geral, que, tanto um como a outra, estão no ponto de partida da ciência.” (Metafísica, M 4, 1078 b 27-30) 

Eis, então, para Aristóteles, o mérito de Sócrates: discurso indutivo e a busca pelas definições universais, afinal, Sócrates não separava os universais nem as definições, de tal modo que não promoveu o objeto da definição universal à categoria da essência subsistente por si mesma, separada da realidade sensível. 

àNão se pode atribuir a Sócrates a paternidade da doutrina das formas inteligíveis, porque jamais considerou que o universal formulado pela definição é um ser separado das coisas sensíveis. 

Aristóteles contesta Sócrates quanto à virtude ser um conhecimento, bem como o acusa de ter negligenciado as fontes da virtude e o modo como adquiri-la (Ética a Eudemo, I 5, 1216 b 10). 

Enquanto Sócrates fixa as virtudes morais na parte racional da alma, Aristóteles também as coloca na parte irracional, considerando, ao contrário de Sócrates, que o saber não tem qualquer função na gênese e na aquisição da virtude. 

Provocação aristotélica ao pensamento socrático: “o que queremos não é saber o que é a coragem, mas sermos corajosos” (Ética a Eudemo, I 5, 1216 b 21-22). 

Sobre a questão da akrasia, apesar de Aristóteles discordar que a virtude é um conhecimento, como afirma Sócrates, ele também afirma que, estando presente o saber, a akrasia não é possível. (Ética a Nicômaco, VII 3, 1145 b 27-29; VII 5, 1147 b 13-17). 

Para Aristóteles, diversamente de Sócrates, há 2 tipos de conhecimento, um, que está disponível e, outro, que está presente. Do mesmo modo que se incorre em erros de silogismo teórico, também se pode incorrer no âmbito da prática, mas, aí, não se trata de afirmar algo errado, mas de adotar um comportamento errado. O ato acrático equipara-se ao do louco, do bêbado e do que dorme. O sentido de “saber” é que está em jogo na análise em Aristóteles.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

"TOSQUEIRA" 8: Sobre o Tempo e a Causalidade Metafísica

Walter Gomide

Pode-se tratar o tempo logicamente como um conceito? Se assim for, então fará sentido falarmos dos objetos que instanciam o "tempo". Mas isto não parece soar adequado: quantos nomes ou constantes lógicas seriam necessários para "apontarmos" inequivocamente os objetos que instanciam o tempo? (Aqui já partimos do pressuposto de que alguma coisa é tempo). Sem dúvida, um número absurdamente infinito, do tamanho igual ao do contínuo. Isto não é possível em uma linguagem lógica, onde os nomes podem ser listados infinitamente com auxílio dos "pequeníssimos" números naturais.
Então, conclui-se: do tempo só podemos falar racionalmente mediante analogias; do tempo, só podemos falar com auxílio de "semelhanças". 
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O tempo é semelhante a quê? Como candidatos aos análogos do tempo, apresentam-se naturalmente as estruturas contínuas. Dentre estas, o espaço e a vida psíquica se destacam. O primeiro nos dá o conceito de variação (os "deltas" das ciências naturais), e a segunda, a vida psíquica, nos proporciona a intuição da consciência e a livre produção imaginativa, algo que não pode ser encerrado no universo lógico-conceitual. Enfim, espaço e fluxo psíquico são os lugares onde o tempo, por semelhança, sente-se à vontade para o seu "repouso" na linguagem.

Na qualidade de semelhante ao espaço, o tempo (na realidade, um "pedaço" deste) está estruturado como um intervalo de números reais. Assim, o caráter sucessivo do tempo é traduzido como uma relação de ordem entre os números reais: passado, presente e futuro são perfeitamente compreendidos como pontos distintos e linearmente ordenados e, com isto, a "espiral de fogo" do tempo dá lugar a uma régua bem-comportada. 
O tempo, como elemento organizador do mundo físico, encontra guarida na linguagem geométrica cujo alfabeto e gramática residem nos números reais. 
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O tempo, como régua bem-comportada, constitui um dos elementos estruturantes da realidade física. A régua-tempo e mais três réguas-espaço (réguas "legítimas") formam o contínuo quadridimensional onde os eventos físicos se situam de maneira coordenada. Assim, um contínuo quadridimensional de números reais abriga o espaço e o tempo. Mas o que assegura que este abrigo é seguro e adequado? Nada! A correspondência entre números reais e espaço e tempo é apenas postulada, e o postulado que afirma tal correspondência foi enunciado no final do século XIX por Georg Cantor, o "domesticador" de infinito 

Um observador "atento" do mundo físico sabe que todos os eventos que o circundam, sejam estes eventos "infinitamente" próximos ou distantes, têm um nome matemático: uma quádrupla de números reais. 
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Tal quádrupla de números reais é o CPF dos eventos físicos, e o observador em questão é quase que um "Deus gago": embora ele saiba que todos os eventos têm nome, nem todos os nomes, ele, o observador, consegue pronunciar 
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Concebamos que haja um colapso das coordenadas espaciais relativas a um dado observador, de tal forma que este só experiencie o fluxo do tempo. Nestas condições, somente o tempo é medido, e o nome do "tempo inteiro", segundo o postulado da correspondência entre espaço-tempo e números reais, é <0,0,0, t>, em que t é maior que zero. 
A quádrupla <0,0,0,t> é o nome de uma "consciência que mede", ou é o nome de uma "régua-tempo", sem qualquer compromisso com uma suposta consciência que viva o fluxo temporal?
Einstein e Bergson que resolvam isto. 
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Em uma régua-tempo do tipo <0,0,0, dt>, em que dt é um intervalo infinitesimal, há tantos instantes quanto pontos de um espaço tridimensional ilimitado. Qualquer "agora" está circundado por infinitas "marcas" de tempo, sejam estas passadas ou futuras; e estas marcas nunca poderão ser nomeadas exaustivamente: ao homem cabe apenas medi-las ou senti-las, mas nunca as pronunciar. 
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Na régua-tempo <0,0,0, t> estão amalgamadas sincronia e diacronia. A sincronia vem da existência concomitante de passado, presente e futuro, posto que estes, vistos de "fora", são pontos "dados" da régua-tempo. Por sua vez, a diacronia vem da tese de que tais pontos, linearmente ordenados na régua-tempo, traduzem a intuição da sucessão temporal tal como esta é vivida pela "alma em processo de distensão", como diria Agostinho de Hipona. 
Sem o pressuposto da diacronia, um intervalo de tempo qualquer nada mais seria do que uma "queda" de noventa graus de algum lugar da eternidade... 
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Um intervalo de tempo, sem a diacronia postulada, é como um pedaço do "campo visual de Deus", em que passado, presente e futuro são vislumbrados simultaneamente como pontos no espaço. 
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Deus sabe e pronuncia todos os nomes que existem na régua-tempo <0,0,0, t>. Nada lhe escapa: todos os "sorvedouros" ou "sumidouros" do "agora" têm um índice, um nome que lhes aponta univocamente. A linguagem de Deus é infinitária e contínua. Ao homem só cabe a parca linguagem enumerável com suas listas potencialmente infinitas. Mas isto é suficiente para a "grande" ciência - toda a física e saberes correlatos são feitos com uma "gota" do oceano que é a linguagem divina. 
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Da "boca" de Deus, saem ao mesmo tempo todos os nomes que constituem os instantes de tempo. Este jorro simultâneo de nomes pode ser traduzido matematicamente como algo arquetipicamente equívoco, como a divisão 0/0 no âmbito dos números reais. 0/0 é tudo ao mesmo tempo; é um número que aponta tanto para pi quanto para 2/3. 
Por força deste caráter equívoco, e portanto não funcional, a divisão 0/0 não está definida nos reais, mas encontra morada nos transreais; e seu nome, neste novo domínio numérico, é "nullity" (0/0 = "nullity"). 
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Como seria o contínuo quadridimensional do espaço-tempo visto da eternidade? Se tal experimento mental não for estapafúrdio (como creio que não seja), então haverá uma "imagem" para tal situação, e esta imagem poderá, provavelmente, ter um nome matemático. 
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Imaginemos um observador situado para além do contínuo quadridimensional do espaço-tempo que é definido por todas as quádruplas de números reais, de tal forma que a coordenada do tempo seja sempre maior ou igual a zero. Este observador situa-se, em relação a qualquer observador que efetivamente meça algo, em uma posição "metafísica": não há interação causal entre ele e os demais observadores, e sua visão do mundo seria similar à visada que alguém em posição "sub specie aeternitatis" tem dos fenômenos físicos.
Se postularmos que este contínuo quadridimensional está "calibrado" com os números transreais, então o nome desta posição "fora do mundo" é <nullity, nullity, nullity, nullity> 

O observador "transreal" situado na posição < nullity, nullity, nullity, nullity> - ou <0/0, 0/0, 0/0, 0/0>, como bem me lembrou meu amigo Neno Beserra- vê os fenômenos físicos totalmente "espacializados": qualquer diacronia estruturada por nexos causais é intuída como sincronismo pronto e acabado; todos os eventos, para o observador em questão, são simultâneos, e a sua compreensão de mundo é pautada não em deltas temporais, mas em intervalos de espaço. 
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Em relação a um observador "entronizado" na posição <0/0, 0/0, 0/0, 0/0>, não há leis da física. O pressuposto de que os referenciais possam medir segundo leis físicas invariantes é o de que haja mudanças causalmente conectadas (diacronia) e, deste modo, alguém situado em um lugar onde tudo é sincrônico e espacializado está fora do alcance das leis da físicas. Neste sentido, cabe reiterar, <0/0, 0/0, 0/0, 0/0> é o lugar "metafísico" de um contínuo quadridimensional cujas coordenadas são números transreais. 
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No contínuo quadridimensional de coordenadas transreais, a posição <1/0, 1/0, 1/0, 1/0> é o lugar do infinito ou da "utopia". É o ponto de onde o observador intui o fim do espaço e do tempo, mas sem a visão integral e completa que ele, o observador, teria em "nullity". 
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Os olhos em "nullity" nos dão o nome matemático da visão da eternidade, só concebível para um observador onisciente e onipresente. Já a compreensão de mundo ou visão situadas no infinito nos dão o olhar do fim dos tempos. Esta visão cujo mirante é o ponto de fuga da diacronia é um atributo dos profetas, ou dos "intelectuais vanguardistas" com um pezinho no historicismo. 
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Em "nullity" não há mudança: tudo é sincrônico. Já no infinito, o passado está presente na memória, e o presente é eterno. Portanto, no infinito, há uma estranha temporalidade sem pontos futuros. 
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Um ponto no infinito na física é uma singularidade - um lugar onde as grandezas físicas, em suas combinações causais, podem gerar indeterminações. Já na História, aparentemente, o lugar no infinito é a razão última por meio da qual os processos "finitos" se explicam. Na realidade, trata-se quase do lugar na História de onde o arauto do fim dos tempos convoca a ação coesa e firme dos correligionários. 
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Tanto no contínuo quadrimensional do espaço-tempo físico como em um contínuo análogo dos eventos históricos, somente o que pode ser designado por n-uplas adequadas de números reais (as localizações físicas ou históricas) é passível de ser analisado à luz da causalidade física ou histórica. Na física, por exemplo, sabemos que dois observadores quaisquer veem o mundo conforme leis físicas que não mudam quando vamos de um observador ao outro, desde que tais observadores estejam situados na "parte real" do contínuo de coordenadas transreais. Da mesma forma, por analogia, podemos postular que as leis históricas estruturais (historicismo) são invariantes em relação a mudanças de épocas.
Mas tudo isto é postulado para a parte do contínuo que é descrito exclusivamente pelos números reais. Se os transreais entram na descrição, temos então "metafísica" ou "meta-história" 
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Os observadores de um espaço-tempo transreal que se situam em coordenadas em que há a presença de números do tipo 0/0 ou 1/0 estão "protegidos" das leis da física ou da história. A sua visão dos fenômenos físicos ou históricos nunca poderia dar origem a experimentos mentais "à la Einstein", em suas especulações sobre a simultaneidade dos eventos ou sobre a equivalência entre sistemas sujeitos a campos gravitacionais e a acelerações locais. Nos experimentos einsteinianos, a imaginação está sob as restrições das leis causais da física. Entretanto, os observadores "postados" em "nullity" ou no infinito observam o mundo sob o mais liberal regime de liberdade fenomênica, e há entre as percepções “livres” de tais observadores e o mundo um total isomorfismo: liberdade imaginativa e ausência de diacronia causal entre os eventos se coincidem. 
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Um observador "cavalgando" em um fóton, a partícula de luz, pode ser a imagem poética de alguém que enxerga o mundo a partir de coordenadas em que 0/0 ou 1/0 estejam presentes. Sob tais condições, como já me alertara meu primo Fernando de Mello Gomide, um dos maiores físicos teóricos que o Brasil já teve, o intrépido observador vivenciaria um tempo similar à eviternidade, a "região" da qual os anjos vivenciam as mudanças... 
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Como avaliaríamos temporalmente os fenômenos vistos no fóton? Se partimos do pressuposto de que o "cavaleiro de luz" postado no fóton tem seu relógio marchando como o nosso, então o intervalo que o cavaleiro medirá entre dois eventos quaisquer necessariamente é um número real. Assim, pela igualdade T = gT', em que T é o intervalo de tempo medido por nós que estamos na terra, g é o fator "gama" que é uma fração onde o denominador pode ser zero, e T´é o intervalo medido pelo observador no fóton, intervalo este que é um número real qualquer, a igualdade acima nos daria T igual ao infinito (matemática transreal em vigor), uma vez que, neste caso em que estamos comparando as medidas temporais de um observador à velocidade da luz e as nossas, que estamos em repouso na terra, o fator "gama" é infinito.

Assim, como supusemos acima, se podemos estender as leis da relatividade especial para uma matemática transreal, então iremos medir um intervalo de tempo infinito em relação à diferença de eventos que, no fóton, durou uma quantidade finita expressa por um número real. Mas isto é uma contradição, já que T/g = T´ é uma grandeza indeterminada (valor "nullity") quando g é infinito e T é infinito, contradizendo a tese inicial de que o "cavaleiro de luz" tem o seu o relógio marchando de acordo com a "calibragem" dos reais. 

Podemos postular que o "cavaleiro de luz" meça todos os eventos temporais já sob a "paralisia metafísica": qualquer intervalo de tempo é infinito para o intrépido cavaleiro. Sendo assim, para um observador postado na terra, os eventos temporais medidos no fóton também têm duração infinita, pois segundo a matemática transreal, dado T = gT´, para g e T´ infinitos, temos que T é infinito. 
Entretanto, se assim for, T´ = T/g é igual a "nullity", contradizendo a tese inicial de que o cavaleiro de luz via os fenômenos transcorrerem como se estes estivessem envoltos na eternidade de Aristóteles. 
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O "cavaleiro de luz" mede o seu "tempo próprio" sempre com a régua-“nullity”. Se partimos desta premissa, nenhuma contradição é encontrada com as medidas temporais, feitas por um observador postado na terra, associadas aos eventos em que o observador no fóton encontra "nullity". De novo, o fator gama é infinito, e com isto T = gT´ é igual a "nullity". Sendo assim, T/g = T' é igual a "nullity", como era de se esperar. 

O que seria uma medida de tempo igual a "nullity"? É uma medida que expressa a total indeterminação do intervalo temporal. Quando se atribui "nullity" a um intervalo de tempo, isto é o mesmo que considerarmos que todos os intervalos medidos em números reais e possíveis de tempo estão dados em "superposição". Como tal, este intervalo está fora das possibilidades de medida e não pode ser comparado com nada associado à diacronia causal pressuposta na física. A medida "nullity", aquela que se associa ao "cavaleiro de luz" postado no fóton, é uma espécie de "apeiron" de Anaximandro relacionado às medições. 
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O que o "cavaleiro luminoso" vê ao cavalgar com a velocidade da luz é poesia cravada nas entrelinhas do espaço-tempo. Não é à toa que a luz sempre foi símbolo da vida do espírito, onde reina a liberdade, e não o determinismo das "causações" físicas. 
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Para se ter uma idéia da visão fenomênica que o "cavaleiro de luz" tem dos fatos, não há outra alternativa senão o uso da imaginação. Somente com a faculdade imaginativa podemos ter uma vaga pista do que seria conceber tudo sincrônico, tudo "superposto", sem distinção de localização temporal. Postado no fóton e com tempo próprio igual a "nullity", o cavaleiro luminoso observa uma simples queda de uma gota d´água como um mágico filete de prata 

Extrapolando um pouco o campo da física e com "muita licença teorética", pode-se dizer que o "cavaleiro luminoso" observa o "registro ideal em cartório" do contrato social de Rousseau, ao mesmo tempo em que se dá a dissolução deste contrato pelos seus proponentes. 
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O vanguardista de esquerda está postado na "utopia" e, na qualidade de um "cavaleiro luminoso", não brada "Avante!" aos seus correligionários, mas sim "Venham!" 
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O tempo é semelhante ao fluxo dos rios, sejam estes rios compostos de eventos físicos, históricos ou de mera e banal esperança.
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A relação de causa e efeito se reduz, geralmente, a uma troca de informação entre pontos do espaço-tempo 
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A transmissão de "causação" em um processo físico deveria ser uma função das coordenadas dos objetos envolvidos neste processo. 
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Toda grande teoria científica traz consigo relações causais que revelam seu "batismo metafísico". 
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Na teoria da relatividade especial, as relações causais entre os eventos se dão dentro do "cone de luz" do espaço-tempo quadridimensional de Minkowski. Só por isto, vê-se que é uma teoria que divide o universo entre "luz e trevas"... 
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Um "cone de luz" separa o que é observável do que não é observável. Da mesma forma, uma proposição nítida separa o que é dizível do que é o mais profundo silêncio. 
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As bordas do "cone de luz" separam o tempo dos homens do tempo dos anjos. 
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Para além das bordas do "cone de luz", onde há a região tipo espaço do contínuo quadrimensional de Minkowski, não existe causalidade física. Se há como tal região influenciar nos eventos que ocorrem dentro do cone, isto só pode se dar por algum tipo de causalidade "metafísica", se por este termo entendemos algo que implique causalidade sem o pressuposto de passagem de informação através de um caminho contínuo entre os pontos do espaço-tempo. 
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David Lewis, filósofo norte-americano, postulava que os mundos possíveis são regiões espácio-temporais desconectadas causalmente do universo físico observável. Portanto, nada mais natural do que inserirmos suas topografias na região tipo-espaço do contínuo quadridimensional de Minkowski: para além das bordas do "cone de luz", jazem os mundos possíveis com suas contrapartes da realidade atual 

Pelo fato de a métrica de Minkowski ser um invariante, em relação a qualquer observador definido no espaço minkowskiano (ou em relação a qualquer " cone de luz" que é definível no espaço de Minkowski), os mundos desconectados causalmente são os mesmos. Metafísica e elementos ds2 de intervalo espácio-temporal se alimentando mutuamente.
Se existe, para um observador X postado no espaço-tempo de Minkowski, dois eventos desconectados causalmente, então, para qualquer observador Y também situado neste espaço-tempo, os eventos em questão também estarão desconectados causalmente. 
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Os mundos possíveis de Lewis, em relação a qualquer observador X do espaço-tempo de Minkowski, situam-se na região em que ds2 < 0, uma vez que admitamos que a métrica de Minkowski tenha assinatura <+,-,-,->. 
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Para um observador X do espaço-tempo minkowskiano, qualquer região infinitesimal que satisfaça ds2 < 0 é um mundo possível, um lugar onde a causalidade física não vigora. Nestas regiões infinitesimais onde a física se cala, reina a mais pura "liberdade fenomênica". 
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Só por meio de uma causalidade "metafísica" um evento situado na região "fora do cone de luz" pode atuar sobre um evento que está "dentro do cone de luz". Subtende-se aqui que a distância entre estes eventos é a raiz quadrada de um número negativo, isto é, ds2 < 0. 
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Só podemos postular uma causalidade metafísica se não colapsarmos o conceito de relação causal à transmissão de informação por meio de um caminho diacrônico no espaço-tempo. 
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A relação de causalidade pode ser pensada como uma relação de sustentação, de fundamentação. Assim, se digo que "A causa B", quero com isto dizer que de alguma maneira A fundamenta ou sustenta B; e, para tanto, não há necessidade de pressupor caminhos diacrônicos que ligam a informação "fundante" que vai da A para B: tudo pode se passar na mais perfeita simultaneidade ou sincronia. 
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Assim como o inconsciente em Freud exerce uma causalidade "meta-psíquica" na parte consciente, a região do tipo ds2 < 0 exerce uma causalidade "metafísica" no restante do cone de luz, a região onde valem as leis da física. 
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A causalidade metafísica não pressupõe o tempo, a diacronia ou a sucessão; acontece como um "sopro divino". 
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A causalidade metafísica funciona sem mediação alguma de campos, engrenagens ou caminhos de energia: a ação metafísica se dá como projeção ortogonal matemática. 

Para que haja causalidade metafísica entre dois eventos, estes têm de estar desconectados em relação a qualquer caminho de luz possível no espaço-tempo. Postulemos que, em tal situação, a "distância causal" entre estes eventos é "nullitty". 
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A velocidade de transmissão de informação na causalidade metafísica é infinita 
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Posto que a velocidade de transmissão de informação na causalidade metafísica é infinita, e o tempo necessário para comunicar tal informação é zero (o pressuposto de que na causalidade metafísica a ação causal é instantânea), então a distância percorrida pela informação na causalidade metafísica é "nullity". 
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Há uma série de causalidades metafísicas - causalidades estas que fazem os "instrumentalistas" de plantão urrarem aos céus das medidas bem definidas.... 
Alguns exemplos: causalidade astrológica, histórica, psicanalítica, etc (haja "doutrina das semelhanças" para tudo isto!). O que elas têm em comum? Resposta: "distância causal" nullity entre a causa e o efeito. 
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Um exemplo bem ilustrativo de causalidade metafísica é o princípio de participação de Platão: as coisas são o que são por participarem dos arquétipos ideais que se situam no mundo das idéias. Neste caso, não há o pressuposto de que a informação de ser o que é venha do mundo ideal por algum caminho no espaço-tempo 
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Postulo que há, na região tipo espaço do cone de luz de Minkowski, eventos ou mundos possíveis que atuam metafisicamente no universo observável.
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Assim como o consciente carrega consigo o inconsciente, da mesma forma o mundo observável traz em "suas costas" o mundo das coisas não medíveis. 
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Da topografia do não-observável (o "inconsciente" do mundo), as formas platônicas exercem metafisicamente seu poder causal sobre o que é visto ou medido. 

Se um físico, ao medir, consegue dar nomes às entidades que estão sendo medidas, isto se deve à participação metafísica que as formas platônicas exercem sobre tais entidades. 
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Se as formas platônicas resolvem se ausentar de seu papel metafísico, então os deltas da física se tornam "massas amorfas" de pontos geométricos. 
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A causalidade metafísica é uma função que liga formas abstratas a processos observáveis.
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Sem a causalidade metafísica, as réguas e os relógios se reduziriam a espaços topológicos "à la moluscos" - e isto, na melhor das hipóteses. 
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Os números reais são um corpo ordenado e completo, mas "falta a cabeça": esta é metafísica, e seu nome é "nullity". 
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As leis de Newton são formas platônicas que atuam metafisicamente sobre dinamômetros, relógios e balanças. 
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A realidade observável, com seus determinismos laplacianos, é o resultado do colapso da função de onda das possibilidades metafísicas. 
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A causalidade metafísica atua como a forma sobre a qual as medidas acontecem. 
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Ninguém observa diretamente as relações dadas em uma equação diferencial; só os efeitos metafísicos que uma equação diferencial causa no mundo das medidas são observáveis. 

Um elemento diferencial de tempo, o famigerado dt, é a forma platônica de todos os intervalos de tempo efetivamente observados ou observáveis. 
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A causalidade metafísica impede que haja contradições "reais" no mundo 

Se a causalidade metafísica deixasse de atuar no mundo, tudo ficaria "amorfo"; e o princípio de não contradição teria valor indeterminado. 
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Dos confins do espaço-tempo, onde o tempo pára, os agentes metafísicos exercem sua influência através de "sopros" que viajam com velocidade infinita 
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A metafísica é o estudo das formas inertes que explicam o movimento. 
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Todas as medidas possíveis de uma grandeza estão amalgamadas na forma platônica que define tal grandeza. 
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Existe uma quantidade contínua de formas platônicas que atuam sobre o contínuo de pontos que estão dentro do cone de luz de Minkowski. 
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Só podemos expressar as formas platônicas por meio de analogias geométricas ou poéticas; a lógica, com seu fetiche pelo enumerável, é insuficiente para lidar com o contínuo de formas platônicas. 
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O espaço-tempo onde acontecem os fenômenos físicos deve permitir a causalidade metafísica: ele, o espaço-tempo, não pode estar "blindado" à ação metafísica estruturante e de caráter não diacrônico. 
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As formas platônicas são cristais de tempo de dimensões infinitesimais que estão incrustados no espaço puro das relações metafísicas. 
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Em um espaço cuja métrica nos dá a medida da interação físico-causal entre os pontos, dizemos que a distância entre as formas platônicas e o mundo fenomênico é "nullity". 

A matemática da causalidade metafísica são os transreais. 
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Todo "insight" é a visão de uma forma platônica. 
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A causalidade metafísica é uma função que vai de "nullity" ao mundo dos fenômenos 
Todo "delta" é perecível. 
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Os não-observáveis que geram os "deltas" perecíveis são eternos. 
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