Tosqueiras Musicais

sexta-feira, 14 de abril de 2017

"TOSQUEIRA" 14: Nietzsche e a teoria das forças (a justiça).

Allan Ferreira

Encontramos passagens de Assim falava Zaratustra que podem elucidar nosso enunciado: “[...] o que persuade o vivente para que obedeça e mande, e mandando, exerça a obediência? [...]” e logo depois “[...] onde encontrei vida, ali encontrei vontade de potência; até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor [...]”. Acrescenta ainda: “[...] só onde há vida há vontade. Não vontade de viver, mas ‘como eu ensino’ vontade de potência [...]”. Segunda Parte, Da Superação de si mesmo. 

“A ‘coisa em si’ é tão enganosa quanto um ‘sentido em si’, uma ‘significação em si’. Não evidenciamos lastro com o real em ‘estado de coisas em si’, contudo um meio apolíneo precisa sempre ser primeiramente ordenado para que possa haver um estado de coisas. O ‘o que é isso? ’ constitui um questionamento de sentido a partir da perspectiva da alteridade. A ‘essência’, no singular, é algo da perspectiva e já pressupõe a contrapartida de uma multiplicidade. Percebemos então o mérito da questão, ‘o que é isso para mim? ’(para nós, para tudo que vive etc.).” Pluralismo em Nietzsche. 

“Até agora foi sobre Bem e Mal que pior se meditou: foi sempre um assunto perigoso demais. A consciência, a boa reputação, o inferno, em certas circunstâncias a própria polícia, não permitiam e não permitem nenhuma imparcialidade; em presença da moral, justamente, como em face de toda autoridade, não se deve pensar, e muito menos falar: aqui se obedece! Desde que há mundo, nenhuma autoridade ainda teve boa vontade para se deixar tomar como objeto de crítica; e criticar logo a moral, tomar a moral como problema, como problemática: como? Isso não era – isso não é – imoral?” Nietzsche, Aurora. 

“Com um grande objetivo, somos superiores até à justiça, não apenas à nossos atos e nossos juízes” Nietzsche, Gaia Ciência. 

Notamos uma regular crítica e dúvida em relação a alguns conceitos elaborados por Nietzsche: o que significa estar ‘para além do bem mal’? O Übermensch ou Além do Homem projetado por Nietzsche, aquele que cria seus próprios valores, como ele tece sua transvaloração sobre o modo que interpretamos ‘justiça’ até aqui? Partiremos então para nossa análise dos meios que o Nietzsche procurou nos fornecer para sua ‘ética da justiça’ e de que modo o Übermensch nietzschiano irá se posicionar. 

Objetivamos um estado de direito, no entanto, este estado surge do brutal aniquilamento dos instintos, das pulsões individuais, criando regras de comportamentos morais, que visam à manutenção do poder estabelecido. Este estado visa domesticar, criar corpos obedientes e passivos. A justiça surge como um método, com base no princípio da igualdade, um caminho para compensar o ressentimento e o peso da servidão, mas ao final apenas mantém suas causas. O manto sagrado dos Direitos Humanos, a dignidade do trabalho assalariado, tudo isso não passa de um artifício de nivelamento. O humanismo, no fundo, se revela por uma escravidão alienada. Nosso ‘dever ser’ Kantiano é o direito do outro sobre nós, como imperativo categórico mais forte e mais cruel. Para tais relações de poder há tanta justiça quanto vale seu poder. Um conflito com tensão disforme, entre o apolíneo e dionisíaco, permanece latente. 

Da maneira de Nietzsche torna-se notório que os gritos de justiça em suma são dados pelos homens do ressentimento, da moral, os que estão fragilizados, são sempre os reativos que clamam por justiça aos ativos. Eles se sentem injustiçados, sentem que não têm o que merecem, pedem por uma compensação, clamam por justiça/igualdade. Compreenderemos aqui quase que como uma vingança por parte do Estado. Nossa cultura conhece a justiça apenas do modo ressentido, apenas daquele que não consegue deixar o passado para trás, apenas daquele que não consegue, não pode, agir. Mas esta justiça não traz criação, porque o próprio modo de funcionamento do homem ressentido é um perpétuo incômodo e negação, um constante tornar o mundo cinzento, sem excitação. 

“O direito dos outros é a concessão, feita por nosso sentimento de poder, ao sentimento de poder desses outros. Quando a nossa vontade de potência mostra-se abalada e quebrantada, cessam os nossos direitos” – Nietzsche, Aurora. 

A escatologia dos reativos: “É mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha... Um dia… um dia Deus voltará! E ele te julgará! Pobre de mim, mas você vai ver, sua hora vai chegar!”. O homem do ressentimento é fraco, não consegue esquecer, não consegue superar, não cresce com o que lhe acontece, ele maldiz o devir. Hoje passamos da crença em Deus para a crença no Estado e na Ciência, muletas metafísicas, mas o ideal parece ainda não ter mudado, permanecendo desde sempre “livrai-nos do mal, amém”. 

“Oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como eles anseiam ser carrascos! Entre eles encontram-se em abundância os vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de ânimo tranquilo” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação. 

O homem fraco é aquele que crias valores morais com o que lhe acontece, ele é reativo, ele age para se contrapor, “algo me aconteceu, não posso deixar assim, não posso deixar por menos”. Quem quer revolucionar o mundo? Só aquele que o condena, o calunia, o apunhala pelas costas. A justiça é sempre instrumento daquele que era fraco demais para agir primeiro, e por isso não quer que ninguém mais o faça, tornando instrumento para arrebanhar os oprimidos na busca pelo ideal de igualdade. 

Uma metafísica para carrascos se mostra a justiça. Nada é tão grave como notar que devido esta compreensão niilista de mundo, teremos um estado reativo que julga a vida como insatisfatória, insuficiente, procurando se vingar dos outros e das suas diferenças. Não queremos esta justiça, mas queremos sim a superação de si, queremos transmutar o fraco em nós, conduzir o escravo dentro de nós (este ‘eu’ moral), não lhe dando esta soberba. Assim libertarmos, da justiça, essa dos homens reativos, para uma ética do Übermensch de Nietzsche. 

Não utilizaremos então da punição, não, não sejamos tão pequenos assim. Só o fraco de espírito procura restituir-se de algo, o forte cresce para cima de si mesmo. Não significa ter a capacidade de perdoar, mas de primeiramente não ofender-se, esquecer porque nem mesmo lhe chegou a causar indignação... 

“Tende-se um inimigo, não lhe pagueis o mal com o bem: pois isso o envergonharia. Mostrai isto sim, que ele vos fez algo de bom […] Inventai-me, então, a justiça que absolva a todos, exceto aquele que julga!” Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Da Picada da Víbora. 

Do mesmo modo que não julgamos quando a natureza, ao longo da história humana, através de suas intempéries matou milhares, não cabe a nós julgar o universo, nem aos homens. A natureza age com a potência de suas forças em conflito, nunca em aniquilamento, eu que saiba me relacionar com ela! Acusar a natureza de imperfeita vem de uma impotência do homem para atuar no mundo. A vida se torna estéril quando a acusamos e julgamos. A grande libertação consiste em restituir a liberdade das forças ativas e reativas que regem o mundo, destituir todo sistema punitivo. A vida do forte e do potente não precisa de tutela, nem da justiça, tudo se dá na relação, isto porque a potência sempre encontra o melhor modo de relacionar-se, ela não precisa de agente exterior, ela é basicamente isso, o saber se relacionar, ela não precisa da lei e suas regras, pois ela não quer matar a reatividade, ao contrário ela precisa dela mutualmente. 

“O quanto de injúria ele pode suportar sem sofrer é, por fim, a própria medida de sua riqueza. Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que se permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes os seus ofensores. ‘que me importam meus parasitas? ’, diria ela. Eles podem viver e prosperar – sou forte o bastante para isso” – Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda Dissertação.

Alcançaremos o dia que o homem será vitalmente liberto que prescindirá desta justiça? Quando o homem voará tão alto que a justiça lhe parecerá um pequeno ponto lá embaixo? Quando o homem comparará a justiça à pedra lascada de seus antepassados? Quando? Nietzsche pensa, para um futuro ainda não discernível, uma superação da própria justiça, essa justiça humana, demasiado humana. Queremos dançar onde a justiça soa desafinada, queremos voar onde a justiça parece distante… 

“Para a reeducação do gênero humano. – Vocês, homens prestativos e bemintencionados, ajudem na obra de erradicar do mundo o conceito de punição, que o infestou inteiramente! Não há erva mais daninha! Ele não apenas foi introduzido nas consequências de nossas formas de agir – e como já é terrível e irracional entender causa e efeito como causa e punição, mas fez-se mais, privando da inocência, com essa infame arte interpretativa do conceito de punição, toda a pura causalidade do acontecer. A insensatez chegou ao ponto de fazer sentir a existência mesma como punição – é como se a educação do gênero humano tivesse sido orientada, até agora, pelas fantasias de carcereiros e carrascos!” (Friedrich Nietzsche, Aurora). 

“Justiça – Melhor se deixar roubar do que ter espantalhos ao seu redor – eis o meu gosto. E, em todas as circunstâncias, isso é questão de gosto – e nada mais!” Nietzsche, Gaia Ciência. 

“... o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente combatem com novos meios e invenções...” Nietzsche, Genealogia da Moral. 

O conceito de força e o pensar enquanto força atribuidora de sentido, o legado de Nietzsche na filosofia de Gilles Deleuze, por Maurício MangueiraI; Eduardo Maurício da Silva BonfimII. 

“ É inegável a influência que a obra de Nietzsche exerceu na filosofia de Deleuze. Inaugurando, de certo modo, um novo estilo de pensamento na cultura do Ocidente, Nietzsche conferiu novas interpretações a certos conceitos filosóficos considerados imutáveis e eternos, como os conceitos de verdade, de essência e de força. Utilizando-se da tipologia de forças nietzschianas, Deleuze nos mostra como o saber do Ocidente se funda em um pensamento que o filósofo francês denominará de representacional, em oposição a um pensamento da diferença, elucidando como estas duas formas de conhecer se correlacionam a tipos distintos de forças. Assim, o conceito de força cunhado por Nietzsche permitirá a Deleuze não somente traçar uma crítica ao saber ocidental – predominantemente representacional –, como também desenvolver sua própria filosofia da diferença, profundamente influenciada pela crítica e pelo perspectivismo nietzschianos. 

A cultura ocidental se fez e ainda se faz pelo querer ou desejo de encontrar ou constituir para si conhecimentos, mas não qualquer conhecimento. Buscam-se conhecimentos que sejam verdadeiros, e nesta caminhada uma das principais questões, senão a principal, diz respeito às concepções que o sujeito cria para si ao obter ou constituir seus conhecimentos. As buscas e seus resultados sempre foram colocados em termos de adequação, descoberta ou desvelamento de algo que seria a realidade. Já no que diz respeito ao sujeito, as ideias sempre foram pensadas em termos de cópias ou representações de algo ou de alguém. Nietzsche, por seu lado, no interior desta problemática, vem introduzir os conceitos de sentido e valor, ambos relacionados aos conceitos de corpo e força como elementos que não devem ser menosprezados nesta busca do conhecimento, mas, ao contrário, devem ser privilegiados. 

Mas como Nietzsche pensa esta questão? Pensar o conceito de força para Nietzsche é, na verdade, pensar em forças. Uma força, segundo o pensador alemão, se define pelo complexo de relações que ela mantém com outras forças, e é justamente dessa interação entre diferentes forças que os mais variados corpos são produzidos. Dito de outro modo, um corpo ou um objeto nada mais é do que a expressão ou produto de um determinado conjunto de forças em um dado momento. 

Não há objeto (fenômeno) que já não seja possuído, visto que, nele mesmo, ele é, não uma aparência, mas o aparecimento de uma força. Toda força está, portanto, numa relação essencial com outra força. O ser da força é o plural; seria rigorosamente absurdo pensar a força no singular. ‘Uma força é dominação, mas é também o objeto sobre o qual uma dominação se exerce. ’(Deleuze, 1976). Neste sentido, podemos afirmar que não só o fenômeno – objeto – é força, mas também que o conhecedor, isto é, o sujeito de conhecimento, é um corpo, e como tal, produto ele também de forças. Isto significa dizer que não somente o objeto (enquanto fenômeno), como também o sujeito (enquanto corpo pensante) são antes de tudo um conjunto de forças. É exatamente este caráter criador e plural da força em Nietzsche que fará esse conceito adquirir tamanha importância na filosofia de Deleuze. Afinal, afirmar uma pluralidade de forças na constituição de um dado fenômeno – seja ele objeto ou sujeito – é, por conseguinte, afirmar a pluralidade do próprio fenômeno. Desse modo, um "mesmo" fenômeno pode apresentar diversos sentidos, dependendo das forças que estejam nele presentes bem como daquelas que se apropriam dele no momento. Aqui já vemos se desenhar a nítida correlação entre os conceitos de força e de sentido: na determinação do sentido de alguma coisa importa a determinação ou qualidade das forças que estão prevalecendo ou sobressaindo-se neste processo de determinação. 

Este modo de entender a produção de sentido de algo ou alguém nos apresenta, em verdade, a importância de outra característica fundamental da filosofia nietzschiana do conhecimento: a interpretação. Ora, se um fenômeno e sujeito são forças, a determinação do sentido de um fenômeno não está separada das forças que entram em contato com o fenômeno, produzindo-lhe um sentido, isto é, dando-lhe uma interpretação. E esta é produzida pelas forças que compõem o corpo do sujeito da interpretação. Este privilegiará uma ou algumas das forças que compõem o fenômeno, em função das forças que compõe ele próprio. Este caráter interpretativo do corpopensamento-força em Nietzsche é, com certeza, uma das ideias que maior impacto provocou no percurso filosófico de Deleuze. No entanto, ela não é uma ideia simples. Podemos dizer que todo corpo, seja ele um animal, uma planta, o homem, uma ideia, etc., ao entrar em contato com outro corpo, sempre realiza uma interpretação deste corpo em função das forças que o constituem e que o dominam naquele momento, e que possibilitam ou não o entrar – e a forma de entrar – na própria relação. Na deriva do homem em sua busca pelo conhecimento, a linguagem, isto é, a força e a organização das palavras, adquirem certa importância, a ponto de erroneamente considerarmos interpretação como interpretação linguística, oral ou escrita.” 

Para Deleuze, o pensador – quiçá todo e qualquer sujeito humano – é um atribuidor de sentido, é aquele capaz de interpretar diversos tipos de signos, algumas das diversas forças existentes em um fenômeno, com a condição que não esqueçamos que nele são as suas forças que estão a produzir o sentido. Quando algo aparece, quando algo emerge dotado de certa natureza ou identidade, esta natureza não é a da essência do objeto, e sim aquilo que emergiu do encontro e ação de determinadas forças. Jamais encontraremos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológico ou até mesmo físico) se não sabemos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou nela se exprime. Um fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mas um signo, um sintoma que encontra seu sentido numa força atual. A filosofia inteira é uma sintomatologia, uma semiologia. As ciências são um sistema sintomatológico e semiológico. (Deleuze, 1976). 

A respeito destas forças que se apropriam e fazem emergir um sentido. Sendo o fenômeno uma expressão de forças que se apropriaram de certas forças, podemos dizer que a história da humanidade é uma história dessas apropriações, dessas atribuições de sentido. Mas é possível conhecermos quais são essas forças que atribuem sentido ou, ao menos, algumas dessas forças? Nos homens, as forças em consonância com a linguagem e a vida criam valores, o que é bom ou ruim, o que é bem ou mal. Mas essas criações/nomeações dos valores expressam apenas as forças que compõem os corpos que os expressam. 

É neste sentido que Deleuze nos diz que toda interpretação, de forma geral, é uma avaliação. Mas, ao avaliar, quem avalia sempre o faz de acordo com determinados valores que já são expressões das forças que o constituem. 

Assim, avancemos mais um passo na teoria nietzschiana: vimos que as forças apresentam uma pluralidade de sentidos, mas o sentido, por sua vez, implica o conceito de valor. O pensador, o filósofo ou qualquer homem carrega consigo certos valores que determinarão o modo como ele avalia um fenômeno. A importância do valor para a crítica nietzschiana diz respeito ao fato de que esse conceito introduz na filosofia ocidental o ponto de vista diferencial por meio do qual os próprios valores serão avaliados. Isto significa dizer que os valores, eles mesmos, já são efeitos de avaliações. Só é possível atribuir valores a partir de uma avaliação, de uma determinada perspectiva. Em contrapartida, podemos nos perguntar quais as condições que produzem ou possibilitam as próprias avaliações. Será que devemos cair num círculo vicioso que afirmaria que os valores criam avaliações que pressupõem valores, etc.? Quais são então as condições que fundam os valores e as avaliações? Não existiria algo mais básico que daria alma e corpo aos valores e às avaliações? 

É por isto que Nietzsche nos fala em valores ou avaliações altas ou baixas, nobres ou mesquinhas. Não se pode separar os valores e as avaliações de um determinado modo de vida, de uma maneira de viver. Quando avalia alguma coisa, o pensador necessariamente a considera de acordo com a sua perspectiva, privilegia certas forças que, em última instância, se compõem com suas próprias forças, com a sua própria maneira de pensar. Se todo corpo é um produto de forças, é óbvio que o pensador se constitui, ele próprio, em uma pluralidade de forças dotadas de um sentido. Ao interpretar um fenômeno, é inevitável, então, que o filósofo tente se apropriar dele, conferindo-lhe um sentido ou novos sentidos. 

As avaliações, referidas a seu elemento, não são valores, mas maneiras de ser, modos de existência daqueles que julgam e avaliam, servindo precisamente de princípios para os valores em relação aos quais eles julgam. Por isso temos sempre as crenças, os sentimentos, os pensamentos que merecemos em função de nossa maneira de ser ou de nosso estilo de vida. Há coisas que só se pode dizer, sentir ou conceber, valores nos quais só se pode crer com a condição de avaliar "baixamente", de viver e pensar "baixamente". Eis o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o elemento diferencial do qual derivam o valor dos próprios valores. (Deleuze, 1976). 

Esta correlação existente entre o pensamento e a vida é outra característica inevitável e central da filosofia de Nietzsche, característica que Deleuze utilizará na composição do seu próprio sistema filosófico. Nietzsche talvez tenha sido o filósofo que melhor ressaltou a problemática existente entre pensamento e política, esta última entendida justamente enquanto afirmação de um determinado modo de vida ou de viver. É a isto que Deleuze se refere quando nos fala de um elemento diferencial do qual derivaria o valor dos valores. Este elemento não seria outra coisa senão a vida do pensador: é a vida quem avalia, em último caso, os valores. Ela é o elemento que decidirá se um determinado valor ou um determinado pensamento convém a sua afirmação ou a sua própria destruição. Assim, encontramos em "Nietzsche": 

“O filósofo do futuro é ao mesmo tempo o explorador dos velhos mundos, cumes e cavernas, e só cria à força de se lembrar de qualquer coisa que foi essencialmente esquecida. Esta qualquer coisa, segundo Nietzsche, é a unidade do pensamento e da vida. Unidade complexa: um passo para a vida, um passo para o pensamento. Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida activa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida.” (Deleuze, 2007). 

É por este motivo que Nietzsche afirmará que ele foi o único filósofo até então a conduzir uma verdadeira crítica dos valores, já que todos os projetos anteriores de crítica falharam exatamente neste aspecto, em não considerar o elemento diferencial dos valores, o seu elemento criador, isto é, a própria vida ou os modos de viver do pensador. A crítica diz respeito, então, não a uma crítica dos valores existentes: fazer uma crítica dos valores não é fazer um inventário de todos os valores, denunciando aquilo que supostamente seriam os falsos valores e exaltando os verdadeiros. Essa é a crítica comum, encontrável mesmo em toda perspectiva revolucionária: "Eu na verdade, você no erro!". 

Ao contrário, uma crítica dos valores só pode dizer respeito a uma crítica das forças que estão na origem da sua criação: de que perspectiva ou de que ponto de vista um determinado valor se apresenta como superior, quais modos de vida ou de viver permitiram a sua criação, ou ainda, de forma perspectiva, quais possibilidades de vida ele cria. É neste ponto que encontramos o limite de uma perspectiva representacional. A vida ou os modos de vida, as forças que os ensejam, são o que há de irrepresentável. A vida e o viver são inevitavelmente imanentes aos corpos/forças que compõem a própria vida/viver. A vida e o viver de um corpo jamais podem ser vistos e vividos do exterior, representacionalmente, e caso isso venha a ser feito já seria efeito de certo viver, de certo estilo de vida. E se a crítica diz respeito à criação e não à representação é justamente porque ela se refere à vida como elemento diferencial da criação de valores. 

Seguido este raciocínio, torna-se evidente que o pensamento deixa de ser na sua nascente um ato reflexivo, e nos deparamos com um tipo de conhecimento que não é reconhecimento ou representacional. Não se trata mais de reconhecer valores tidos como superiores e sim de criação e afirmação de valores, criar modos ou possibilidades de vida. Deleuze nos mostra como o problema do conhecimento em Nietzsche passa necessariamente por essa questão: em determinado momento da história do Ocidente, o conhecimento tomou a dianteira, se naturalizou, passou a ser considerado como um fim em si mesmo, subordinando assim o pensamento e a própria vida, opondo-se à própria vida e ao pensamento. Mas não qualquer conhecimento. Ou seja, em dado momento histórico, atribuíram-se ao conhecimento valores superiores à própria vida, valores que deveriam ser reconhecidos como verdades, estas, superiores à própria vida. É precisamente a isto que a crítica nietzschiana dos valores se refere: é necessário investigar qual modo de vida quer um conhecimento que seja superior a si, que atribui ao conhecimento um valor superior a ela mesma, quais forças exigem do pensamento uma atividade puramente cognitiva. 

Mas, ao realizar a crítica à busca pelo conhecimento verdadeiro – de Sócrates até Hegel – e ao modo de vida que o instituiu ou o institui, Nietzsche está trazendo para o Ocidente um novo sentido que toma para si o pensar e o próprio conhecer. 

Mas então a crítica, concebida como crítica do próprio conhecimento, não exprimiria novas forças capazes de dar outro sentido ao pensamento? Um pensamento que iria até o fim do que a vida pode um pensamento que conduziria a vida até o fim do que ela pode. Em lugar de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo da vida. Ambos iriam ao mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida. (Deleuze, 1976). 

Mas a palavra vida não nos diz muito, pois todos os seres humanos são seres vivos. Além do mais, não existe apenas um modo de vida, mas vários modos. 

O que Deleuze deseja evidenciar por meio da obra de Nietzsche é não somente o triunfo do pensamento representacional na história da cultura ocidental, mas principalmente a vida reativa que se lhe encontra associada. O pensamento deixa de ser uma força criadora para se transformar em aparelho de observar e registrar, de entranhas congeladas. Se o pensador alemão já falava em uma vitória das forças reativas e de uma vida reativa, o filósofo francês nos mostra como esse caráter reativo está correlacionado, por sua vez, a um pensamento reativo, um pensamento que esqueceu o movimento primeiro da criação, que se pauta pelo já criado e naturalizado, e que, desta forma, caracteriza-se pela busca do conhecimento do que já existe, transformando tal reconhecimento ou representação de valores em verdades consideradas superiores. Esse predomínio das forças reativas no pensar acarreta algumas consequências. Da mesma forma que as forças reativas depreciam e aniquilam a vida, separando-a daquilo que ela pode, podemos observar esse mesmo efeito no pensamento: as forças reativas subtraem as forças ativas do pensamento, separando-o assim de sua potência criadora. A atividade do pensamento se torna então predominantemente reativa, e o seu objetivo não passa agora de um desejo de reconhecimento.” 

Minhas considerações: 

O pensamento nietzschiano no que toca a sua extemporaneidade mais singular visa nos aproximar da realidade orgânica e sua vital potência, sem a necessidade dos demais artifícios e ideais ascéticos considerando estes como sendo sintomas castradores e niveladores. Um escape do rebanho uniforme desertificado, fuga de um solo onde a estrela bailarina de Nietzsche jamais poderia brotar e então o reencontro com nossos próprios instintos e afetos singulares através dos quais, agora sim, dada a tensão entre o apolíneo e o dionisíaco, a arte criadora terá sua nova oportunidade para amar o real como ele se apresenta. 


sexta-feira, 7 de abril de 2017

"TOSQUEIRA" 13: A hipótese do "terceiro observador" na física newtoniana: Um Dasein privilegiado?

Eric Ewans Mendes

Introdução:

Nessa “tosqueira” que apresentarei, tenho por objetivo tentar trabalhar a hipótese do “terceiro observador”, levantada pelo Professor Walter em uma aula de mestrado por meio de uma breve apresentação do conceito de espaço e tempo na física e na filosofia heideggeriana. Algumas perguntas são importantes: É possível uma aproximação do conceito heideggeriano de tempo e espaço com a física? Assim como ocorre variação de medição no tempo conceituado pela física, também ocorre no tempo conceituado por Heidegger? O que significa o “terceiro observador”? Essa hipótese possui um caráter teológico? 

1. Conceito de tempo e espaço na física e na filosofia heideggeriana:

Nesta primeira parte, apresentaremos os conceitos de espaço e de tempo, de maneira breve e simples, tanto na física quanto na filosofia heideggeriana. Vejamos primeiro na física:

Espaço – o conceito de espaço que mencionaremos aqui é este: Espaço é a localização de um determinado objeto em certo momento em relação a um determinado referencial. 

Tempo – no conceito clássico (newtoniano), o tempo é absoluto e uniforme, isto é, existe independentemente da matéria e do espaço; isto porque, em qualquer ocasião, transcorre da mesma forma, não sendo mais depressa ou devagar em função de qualquer fenômeno físico que ocorra. Em relação a dois eventos simultâneos, o tempo será absoluto para ambos os observadores inerciais. Contudo, vale lembrar que, dependendo das velocidades envolvidas no movimento, e das dimensões reais dos corpo que se movimentam, os conceitos de tempo podem variar. 

Agora veremos de maneira “tosca” como a filosofia heideggeriana define esses dois conceitos:

Espaço – O conceito de espaço heideggeriano é muito extenso para o discutirmos aqui. Por isso, tentaremos resumir esse conceito de uma maneira possivelmente satisfatória. Porém se tal definição ficou satisfatória ou não, deixarei ao julgamento dos leitores. Além do conceito de espaço, precisamos também entender o que é espacialidade. É lógico que, tratando-se de Heidegger, esses conceitos são de caráter existencial e tem como ponto de partida o ente que é conhecido como ser-o-aí ou Dasein.¹ Mas, o que significa ambos então para Heidegger? Espacialidade deve ser concebido a partir do Dasein, do seu modo-de-ser. Espacialidade é algo constitutivo do Dasein que possui duas características determinantes – o des-afastamento (que significa fazer desaparecer o que está afastado, revelando-o), e o direcionamento (é a abertura das regiões – é mais que “na direção para”, mas é também “na vizinhança de algo que está nessa direção” - empregadas no ver-ao-redor, indicando aonde algo pertence, para onde vai, de onde é trazido e onde é buscado em seu mundo-ambiente). O espaço só pode ser concebido, segundo Heidegger, com o fenômeno de mundo, e mundo é entendido como contexto referencial de significados e também o ambiente que o Dasein entende a si próprio. Isso é de caráter existencial. Um exemplo: Uma viagem de “meia hora” não são 30 minutos cronológicos, mas a duração, no sentido kairológico do afastar-se de um ponto e, no direcionamento, des-afastar-se de outro em uma certa região. Esse conceito pode ser usado nos estudos exatos e científicos? Heidegger diz que sim, no uso da espacialidade como temática nas tarefas de cálculo e medição como a agrimensura. 

Tempo – Sobre o tempo, Heidegger afirma que ele é o horizonte que leva à possibilidade de entendimento-do-ser de forma geral. Sabemos que assim como o espaço o tempo também é interpretado a partir da investigação do Dasein. Primeiramente que o conceito de tempo em Heidegger é kairológico (kairós) e não cronológico (chronos), pois o Dasein é um ente existencial e seu tempo é observado existencialmente; disto decorre que o Dasein possui a sua temporalidade (Zeitlichkeit). Em sua relação com o espaço, a temporalidade do Dasein é constituída com o des-afastamento e o direcionamento. Essa temporalidade é o sentido-de-cuidado (cuidado juntamente com ocupação e solicitude apresentam o comportamento do Dasein no mundo) em que a constituição do Dasein e sobre o seu fundamento que é possível esse ente ser ontologicamente o que é. Assim o Dasein, em seu sentido-de-ser, é temporalidade; e essa temporalidade aponta a sua cotidianidade que é um determinado como da existência que predomina durante o “seu tempo de vida”. Em outras palavras, é como o Dasein “vive no dia-a-dia.” No exemplo acima da viagem de 30 minutos, esses trinta minutos apresentam uma vivência cotidiana que se dá no deslocamento de um lugar para o outro. 

2. A ilustração dos dois aviões e dos observadores:

Passemos após as conceituações para a nossa ilustração. Tome por imagética dois aviões que saem de aeroportos diferentes de uma mesma cidade às 09h e nenhum minuto a mais. Levemos em conta que os destinos de cada aeronave possuem distâncias iguais ao seu ponto de origem. Também levemos em conta que os aviões são do mesmo modelo, e estão com a mesma quantidade de pessoas. E consideremos que os aviões estão em uma velocidade média de 801,01 km/h, o primeiro, e 600 km/h, o segundo avião, ambos voando em um céu limpo e sem problemas de turbulências. Vale lembrar que em cada aeroporto há um observador inercial que está com um relógio aguardando os respectivos aviões pousarem e, assim, marcam a que horas cada aeronave chegará ao seu destino. Para ilustrar isso melhor, usaremos o sistema de coordenadas cartesiano:


Conforme se mostra na ilustração acima, ambos os aviões saíram no mesmo horário de seus destinos e percorrem a mesma distância do seu ponto de saída até os observadores (600km). Porém é visível a pequena diferença de velocidade entre os dois. O primeiro avião que chegará ao observador A’ está 0,01km/h mais rápido que o outro avião. Quando o primeiro avião chega, o observador constata que ele chega aproximadamente às 09h44min. O segundo avião, por sua vez, chega um minuto após o primeiro e o observador B’ vê que o avião chega quando o seu relógio indica, de forma aproximada, 09h45min. Assim, conclui-se que os fenômenos não foram simultâneos, pois houve variação no tempo medido (chronológico) por cada observador, resultado das diferenças de velocidade dos aviões.

E pela perspectiva heideggeriana? Se interpretarmos os fenômenos conforme o pensamento de Heidegger, a resposta é: os dois fenômenos são simultâneos. Por quê? Porque para Heidegger, conforme definimos anteriormente, “tempo” ou melhor, “temporalidade” (Zeitlichkeit) no afastar dos aviões de seus respectivos pontos de partida e o des-afastar dos observadores direcionando-se aos pontos de chegada é de caráter existencial (kairológico – kairós), e não cronológico, como é visto na física. Em outras palavras, os dois fenômenos são simultâneos existencialmente, pois chegaram ao seu destino no momento oportuno, isto é, no momento em que deveriam chegar, não afetando os entes observadores, os entes passageiros e os pilotos de cada aeronave em todos os aspectos. Em outras palavras, a diferença de velocidade das aeronaves não gera variação no tempo existencial (kairológico). 

Porém, cada observador só tem conhecimento do ambiente em que se encontra: o observador “A” tem apenas a compreensão do que se passa em seu mundo-ambiente e, do mesmo modo, o observador “B” fenomenicamente só vê o que se passa em seu mundo-ambiente, o que mostra que nenhum observador conhece além do ambiente que lhe é próprio. Então, quem é que dá o veredito de que os eventos marcados acontecidos em “A” e “B” foram simultâneos ou não? Para responder a essa pergunta, surge a hipótese do “terceiro observador”. 

3. A hipótese do “terceiro observador” ou “Dasein privilegiado” 

Essa hipótese² é justamente fruto do questionamento feito no tópico anterior. Como os observadores “A” e “B” não podem dar o veredito sobre os fenômenos como simultâneos ou não, isso significa que se existe um veredito é porque há um observador externo, em uma posição privilegiada aos dois outros, o qual tem a possibilidade de concluir sobre os dois eventos se porventura ambos foram simultâneos ou não. Como poderíamos entender imageticamente a posição desse “terceiro observador”? Retomando ao gráfico do tópico anterior, pelo qual vimos os fenômenos observados por “A” e “B”, agora notaremos que haverá um acréscimo na imagética, que é a posição do “terceiro observador”. Vejamos o gráfico:


Veja que a posição do “terceiro observador” se encontra fora dos eixos do plano cartesiano, o que lhe permite ter uma visão superior dos fenômenos em relação aos observadores inerciais que se encontram inseridos nos ambientes dos eventos e, portanto, esta posição “de fora” lhe permite estudar e concluir se os fenômenos do pouso dos aviões foram simultâneos ou não. Isso indica que o “terceiro observador” é hipoteticamente necessário para que se conclua a observação dos fenômenos.

Mas quem é o “terceiro observador” na ciência? A própria ciência como linguagem, e esta linguagem se substancializa na figura do cientista que levanta as suas hipóteses e opera matematicamente para relacionar os observadores. E olhando pela perspectiva heideggeriana, quem seria o terceiro observador? 

Pelo pensamento de Heidegger, podemos inferir que tal observador é um Dasein-em-posição-privilegiada, isto é, ele transcendeu os outros dois observadores pela linguagem e, por essa mesma linguagem, des-oculta os mundos-ambientes dos dois observadores por meio do logos, interpretando a relação deles com os demais entes em seus respectivos mundos e como eles se comportam nesse mundo. 

4. Essa hipótese pode ser considerada também uma linguagem teológica?³

Conforme a pergunta do título, podemos entender que essa hipótese é, também assim como a temporalidade em Heidegger, uma linguagem teológica? A temporalidade em Heidegger é uma linguagem teológica retirada dos Evangelhos, pois tempo para Heidegger, como vimos, é kairós, e não chronos. A mensagem cristã é: que a salvação deve ser abraçada antes da morte que pode vir a qualquer momento. Paulo também utiliza kairós para tratar do tempo ou momento oportuno, um termo importante na analítica do Dasein de Heidegger. 

Na questão da hipótese do terceiro observador, podemos afirmar que sim, ela é uma linguagem teológica. Numa perspectiva judaico-cristã, podemos notar passagens que Deus age como o “terceiro observador”: em Gênesis na narrativa da Criação, quando após ter criado todo o universo e o homem, vê a sua Criação e a considera “muito boa” (Gn 1.31), no episódio da Torre de Babel também em Gênesis (Gn 10), ao ver o sofrimento do povo e acompanhar no cativeiro e o seu comportamento após a saída do Egito em Êxodo (Êx 3), nos Salmos onde Deus é aquele que se inclina para observar a sua criação (Sl 113.5, 6). Nos Evangelhos quando Jesus fala que se um irmão pecar contra ti leve duas ou três testemunhas após falar com ele a sós (Mt 18.15-20), na sua paixão na cruz (Mt 27, Mc 15, Lc 23, Jo 19), são alguns exemplos. 

É claro que isso pode ser aplicado em outras religiões e filosofias, como no Islamismo, no Budismo, no panteão grego dos deuses que observavam os comportamentos humanos e manifestavam-se próximos aos humanos assumindo outra fisionomia, na religião nórdica, etc. Mas, como cristão que sou, reforço a perspectiva cristã de Deus como o “terceiro observador” juntamente com o Filho e o Espírito Santo, isto é, a Santíssima Trindade. É claro que devemos levar em conta que se entendermos pela filosofia de Heidegger, Deus não é um Dasein privilegiado, pois Dasein são os entes que se encontram no mundo, e Deus transcende este mundo; e sua observação é infinitamente superior à do Dasein. Enquanto o Dasein domina a linguagem, Deus é o Senhor de todas as linguagens. Mas isso não impede de usarmos o pensamento heideggeriano. Podemos utilizá-lo. O que ocorrerá é a mudança dos termos em relação a Deus como “terceiro observador”: Deus não é um Dasein-em-posição-privilegiada, mas é o que eu chamaria de O-Divino-Criador-e-Observador-do-mundo. 

Conclusões:

Mediante o que apresentei nas seções anteriores dessa “tosqueira”, apresento as seguintes conclusões: primeiro, que existe sim a possibilidade de aproximação do pensamento heideggeriano com a física, pois o próprio Heidegger deixa claro que o seu conceito de tempo e espaço podem ser temáticas no exercício das disciplinas que costumam ser denominadas “exatas”. Em segundo lugar, vimos que os dois eventos apresentados na ilustração acima podem ser concluídos de maneiras diferentes. Se for pelo viés da física, os dois fenômenos não ocorreram simultaneamente, pois há entre variação na medição de tempo (sentido cronológico) devido as diferenças de velocidade das aeronaves. Já pela perspectiva de Heidegger, os eventos são simultâneos, pois não ocorre variação no tempo existencial, o que indica que dependendo da forma como se interpreta o fenômeno, o veredito pode mudar. Terceiro, quem determina o modo de interpretação e dá o veredito é o “terceiro observador”, que está em uma posição privilegiada à dos observadores inerciais. Esse “terceiro observador” é, à luz do pensamento de Heidegger, o que podemos chamar de Dasein-em-posição-privilegiada que transcende os outros dois observadores pela linguagem. Finalmente, atrevo-me a dizer que essa hipótese do “terceiro observador” é também de caráter teológico, pois há passagens bíblicas que dão a entender Deus como o “terceiro observador”. É evidente que no caso de Deus, como tal observador, a situação ontológica é diferente daquela que se percebe quando homem é o terceiro observador. Ele, Deus, é o Observador Supremo, o Senhor da linguagem. Portanto, com base no pensamento heideggeriano, infiro que Deus é O-Divino-Criador-e-Observador-do-mundo. 


NOTAS TOSCAS:

[1] É importante explicar que Dasein é a combinação feita por Heidegger (na sua obra mais importante Ser e Tempo) do artigo neutro das (o) + o verbo sein (ser), que pode ser traduzido como ser-o-aí. Heidegger em sua filosofia busca refazer a pergunta pelo sentido do ser, “o que é o ser?”, que, segundo ele, não foi respondida adequadamente pela tradição filosófica pelo fato da pergunta pelo sentido do ser não ter sido analisada de maneira mais profunda. Assim Heidegger afirma que é importante refazer essa pergunta e essa investigação parte de um ente que compreende a sua própria existência na história chamado de Dasein, isto é, o homem (ser humano) que compreende a sua existência não categoricamente como na tradição filosófica, mas que quando responde a pergunta: “Quem é você?” diz: “Sou filho(a) de João e Maria, nasci em Cuiabá, etc.” É a partir desse ente que é existência (aí Heidegger ser também chamado de Existencialista) Heidegger procura trabalhar a investigação acerca do ser. Na verdade a filosofia do Heidegger é uma analítica do Dasein e sua tarefa é em primeiro lugar ontológica. Márcia Schuback traduz Dasein como pre-sença, entendendo que como o Dasein é presença (parousia e ousia) em sua temporalidade e historicidade, ela optou por essa tradução. Porém, concordo com Castilho em partes (já que aparece em sua tradução de Ser e Tempo - ser-aí), prefiro usar o termo no alemão. E por que Heidegger não usa o termo homem? Porque, segundo ele, esse termo está carregado de categorizações da tradição, ocultando assim o ser desse ente. Heidegger não despreza o termo (tanto é que ele aparece em Ser e Tempo e em outras obras) mas, usa o Dasein por considerar mais adequado a sua tarefa ontológica. 

[2] Vale lembrar que essa hipótese surgiu durante a aula do mestrado “Tópicos Essenciais em Filosofia e Física” ministrada pelo Walter, na qual ele mencionou que, no exemplo dos observadores dentro do trem em movimento e outro fora, não são tais observadores que dão o veredito sobre o fenômeno, no que diz respeito às transformações de Lorentz que envolvem as medias feitas por tais observadores. Então, quem será? 

[3] Sugiro a releitura da tosqueira do Walter – 10: A palavra infinita que criou o universo.